Na ADI 2240/BA proposta pelo Partido dos Trabalhadores contra a Lei n° 7.619/2000, do Estado da Bahia, que criou o Município de Luís Eduardo Magalhães, decorrente do desmembramento do Município de Barreiras/BA, tendo como fundamento da impugnação a inexistência da lei complementar federal exigida pelo art. 18, § 4º, da Constituição, com a redação determinada pela EC n° 15/96, o STF declarou a inconstitucionalidade da lei, sem pronúncia de sua nulidade pelo prazo de 24 meses, até que o legislador estadual estabeleça novo regramento.
O Relator, Ministro Eros Grau, ressaltou no seu voto a realidade fática subjacente à questão constitucional, demonstrando as conseqüências drásticas de uma eventual declaração de inconstitucionalidade da lei impugnada, tais como: a existência efetiva do Município como ente federativo dotado de autonomia há mais de seis anos; no seu território foram exercidos atos próprios ao ente federativo dotado de autonomia com a promulgação da sua lei orgânica; o Município legisla sobre assuntos de interesse local (até maio de 2.006, foram sancionadas mais de duzentas leis municipais); o Município elegeu seus Prefeito e Vice-Prefeito, bem assim seus Vereadores, em eleições realizadas pela Justiça Eleitoral; instituiu e arrecadou tributos de sua competência; prestou e está a prestar serviços públicos de interesse local; exerce poder de polícia; em seu território foram celebrados casamentos e registrados nascimentos e óbitos; o Município recebe recursos federais e estaduais e participa da arrecadação de tributos federais e estaduais. Em suma, o Município de Luís Eduardo Magalhães existe, de fato, como ente federativo dotado de autonomia municipal, a partir de uma decisão política. Esta realidade, segundo o Ministro Eros Grau não pode ser ignorada.
A referida decisão evidencia um processo que Dieter Grimm denomina de retorno da “constituição empírica”. Na obra Die Zukunft der Verfassung de 1991 (Constitucionalismo y derechos fundamentales, Editorial Trotta, 2006), Grimm afirma que o conceito de constituição foi inicialmente um conceito empírico que passou do âmbito da descrição da natureza ao da linguagem juridíco-político para designar a situação de um país, a forma que este foi configurado mediante as características de seu território e habitantes, sua evolução histórica e as relações de poder nele existentes, suas normas jurídicas e instituições políticas. Assim, com o esforço por limitar o poder do Estado em favor da liberdade dos súditos, que penetrou desde meados do século XVIII na doutrina do direito natural, se estreitou progressivamente o conceito de constituição, eliminando-se gradualmente os elementos não normativos até que a constituição apareceu unicamente como a situação determinada pelo direito público. Somente com as revoluções liberais do final do século XVIII, abolindo com a força decorrente da soberania hereditária e erigindo uma nova sobre a base da planificação racional e a determinação escrita do direito, se consumou a transição de um conceito de ser a um de dever ser. Desde então a constituição se identificou com o conjunto de normas que regula de modo fundamental a organização e o exercício do poder estatal, assim como as relações entre Estado e sociedade. Para Grimm esse sentido normativo do conceito de constituição tem prevalecido até hoje, ressaltando, contudo, que o antigo conceito empírico de modo algum restou obsoleto e ocorre regressar em forma de “fator interpretativo” quando a constituição jurídica não se impõe na realidade social ou produz efeitos distintos do esperado.
Segundo Grimm, a redução do conceito ao de lei fundamental não elimina a constituição material (empírica), que permanece presente nas realidades sociais em que se reconfigura o pode político. A constituição normativa encontra sempre uma constituição empírica prévia e deve se impor sobre ela. Em tais circunstancias a relação entre ambas, a pretensão jurídica e a acomodação dos fatos não é unidirecional, senão de ida e volta. Os objetos de regulação do direito constitucional têm sua própria dinâmica e consistência, que repercute, por sua vez, na compreensão e aplicação das normas constitucionais; ao revés, sua efetividade esta determinada pela circunstância de que operam no plano simbólico do direito. Daí que as constituições não podem mudar a realidade de forma imediata, senão apenas influir indiretamente. Influência que descansa na possibilidade de legalizar o ilegalizar as relações de poder existentes e, deste modo, fortalecê-las ou debilitá-las. A legalidade é em si mesma um fator de poder e quanto mais profundamente enraizada se encontra na sociedade, mais depende a aceitação das decisões políticas de sua conformidade com a constituição.
Em tais circunstâncias, a decisão proferida pelo STF na ADI 2240 revela o retorno da constituição empírica de que fala Grimm, notadamente como fator de interpretação e aplicação da norma constitucional, afastando, temporariamente, a constituição normativa.
domingo, 28 de outubro de 2007
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2 comentários:
O ano de 2007 tem sido marcado por decisões importantissimas no STF como é o caso da ADI nº 2240/BA. Tal pronunciamento de nossa corte maior reforça a necessidade de compreendermos os problemas decorrentes da modulação.Temática esta que tem merecido atenção desse nosso quadro de análise eletrônico. Contudo, a ADI nº 2240/BA traz uma outra ponta de discussão. Pois, o voto do Ministro Eros Grau fundamenta-se numa categoria "a força normativa dos fatos". Temos de refletir se com as decisões de 2007 estamos diante de novas categorias ou são essas, na verdade, velhas categorias com uma nova roupagem. Pista para dirimir essa dúvida nenhuma está na obra de Dieter Grimm quando menciona, hoje diante da crise do papel da constituição, um retorno da "constituição empirica".
Para mim isto é uma característica que Loewenstein já mencionava na sua classificação de constituições ao falar das constituições nominais. Nessas a constituição empírica/material têm grande força. Como disse Pina na introdução do livro do Grimm a Constituição alemã é a que está mais perto do ideal kantiano, acredito que estejamos bem longe desse ideal ainda na nossa Constituição Colcha de Retalhos... A atuação do STF tem sido importante para chegarmos a uma constituição cada vez mais normativas e acredito que levar sempre em consideração os fatos vai ajudar a termos uma constituição cada vez mais efetiva.
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