sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Democracia e liberdade de imprensa

Conforme amplamente noticiado, o Min. Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (STF), na ADPF 130, “determinou que juízes e tribunais suspendam o andamento de processos e os efeitos de decisões judiciais ou de qualquer outra medida que versem sobre alguns dispositivos da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67)”.


Trata-se de uma ação muito “rica” em termos de dogmática constitucional, e sua resolução pelo Plenário do STF ajudará a definir o contorno dos direitos fundamentais na Constituição brasileira, tanto em termos de metodologia quanto em relação ao conteúdo propriamente dito de certos princípios constitucionais. Isso sem mencionar aspectos processuais do manejo da ADPF e seus efeitos como instrumento de controle concentrado. Tamanha complexidade não poderia ser abordada completamente nos limites deste post, por isso vamos nos concentrar na questão da supremacia da liberdade de expressão.


A decisão constrói seu argumento a partir da afirmação da democracia como “valor-continente”: A Democracia é o princípio dos princípios da Constituição de 1988. Valor dos valores, ou valor-continente por excelência. Aquele que mais se faz presente na ontologia dos outros valores, repassando para eles a sua própria materialidade [...] Exatamente por se colocar no corpo normativo da Constituição como o princípio de maior densidade axiológica e mais elevada estatura sistêmica é que a Democracia avulta como síntese dos fundamentos da nossa República Federativa”.


Em seguida, a decisão afirma a inter-relação entre democracia e liberdade de imprensa e a supremacia da liberdade de expressão: Tudo a patentear que imprensa e Democracia, na vigente ordem constitucional brasileira, são irmãs siamesas [...] Por isso que, em nosso País, a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade, porquanto o que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja”


A apologia da liberdade de imprensa na decisão é feita com argumentos robustos. Todavia, até que ponto a jurisprudência do STF sustenta essa posição? Podemos realmente afirmar que a Constituição garante que “o que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja”?


A princípio, a resposta que o STF vem fornecendo a essa questão é negativa. É certo que o STF por mais de uma vez considerou inconstitucionais dispositivos da Lei de Imprensa, e a própria decisão na ADPF 130 cita alguns precedentes. Todavia, quando vamos conferir o que dizem esses precedentes, o que constatamos é que o reconhecimento da inconstitucionalidade daquela lei não foi afirmado para garantir a supremacia da liberdade de expressão, mas ao contrário, para dar prioridade à proteção da imagem.


De um modo geral, os precedentes do STF sobre a constitucionalidade da Lei de Imprensa foram firmados no bojo de ações que visavam à reparação de danos à imagem. Por exemplo, em um dos precedentes citados na ADPF 130, o RE 447584, tratou-se de um recurso do Jornal do Brasil que requeria a redução do valor da condenação, valendo-se para tanto de um dispositivo da Lei de Imprensa que limitava o valor das indenizações. Na ocasião, o STF reconheceu a existência de um limite imanente ao direito de imprensa. Este excerto do voto do Min. Peluso esclarece as razões adotadas pelo Tribunal:


A interpretação unitária das regras constitucionais evidencia, dessarte, que tal limitação é inerente ao recorte da própria esfera normativa da liberdade de imprensa, no sentido de que ela só pode ser exercida em sintonia com a Constituição e, portanto, só existe como direito, quando não ofenda os valores da intimidade e da incolumidade moral. Toda atividade exercida em nome da liberdade de expressão, mas com ofensa à honra e à reputação alheia, não é tolerada pela Constituição da República, porque se põe fora do domínio de proteção normativo-constitucional desse bem jurídico ...”


No mesmo sentido foi o voto do Min. Eros Grau, que, apesar de destacar a relevância da liberdade de imprensa, afirmou que “não tem cabimento nenhum abuso no exercício dessa liberdade. A imprensa não pode se transformar em um quarto poder, imune a qualquer tipo de controle”. Também acompanhando o voto do Min. Peluso, o Min. Gilmar Mendes afirmou em seu voto: “claro que a liberdade de imprensa tem um valor fundamental na democracia e deve ser preservada, todavia não há de se fazer em detrimento de valores centrais como a própria expressão 'da dignidade da pessoa humana'”.


Assim, uma leitura rápida da ementa do RE 447584 pode levar à conclusão que este precedente dá suporte à supremacia da liberdade de expressão defendida na decisão liminar da ADPF 130. Uma leitura dos votos, todavia, revela que naquele julgado o STF, ao reconhecer a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei de Imprensa, estava privilegiando a intimidade e a incolumidade moral sobre a liberdade de imprensa.


Aliás, o STF vem repetidamente aplicando a Lei de Imprensa, como no recente caso da queixa-crime (Inq. 2.390/DF) recebida pelo Plenário em outubro de 2007. O Tribunal, inclusive, ao julgar os Embargos de Declaração no AgRAI 542148/SP, reconheceu expressamente a constitucionalidade de um dos dispositivos atacados na ADPF 130 (no caso,tratou-se do art. 57, § 6º, da Lei de imprensa, que estabelece a necessidade de depósito prévio, no valor da condenação, como pressuposto para apela nas ações indenizatórias fundadas na Lei 5.250/67).


Obviamente, a jurisprudência do STF pode se alterar, e não será uma surpresa caso o Tribunal venha a referendar a decisão liminar na ADPF 130. O que não acredito, porém, é que o STF coloque a liberdade de imprensa em um patamar mais elevado do que os demais valores protegidos na Constituição, mantidas as posições dos atuais membros do Tribunal.

2 comentários:

Farlei Martins Riccio disse...

Ainda sobre a liberdade de expressão, li recentemente uma passagem da obra de Goethe, "Máximas e Reflexões" que diz:
"A censura e a liberdade de imprensa hão-de continuar sempre a sua luta. O poderoso exige e exerce a censura; o homem sem poderes reclama a liberdade de imprensa. O primeiro quer ser obedecido, em vez de ser limitado nos seus planos ou na sua atividade por uma contradição insolente. O segundo quer dar voz às razões que lhe legitimam a desobediência. Por toda a parte se encontrará uma tal oposição.
Notar-se-à contudo também que, à sua maneira, o mais fraco, o que sofre a dominação, procura igualmente limitar a liberdade de imprensa, nomeadamente quando conspira e procura não ser traído.
Ninguém clama tanto por liberdade de imprensa como aquele que a quer perverter."

Prof. Ribas disse...

A postagem a respeito da decisão sobre a liberdade de imprensa é altamente relevante em termos dos seus. Lá está a expressão "continente democracia". Não é tão comum ao STF esse compromisso genuíno com a democracia. De fato, as discussões a respeito de liberdade de imprensa sempre estiveram sob o aparato de "reparação" ou individualismo como está examinado em nossa obra Os Direitos à Honra e àImgem pel Supremo Tribunal Federal La\boratório de Análise Jurisprudencial - Fernanda Duarte e outros Ed. Renovar 2006