Na pesquisa que venho desenvolvendo na Puc-Rio, tem-se tornado cada vez mais robusta a hipótese de que o Estado de Direito atravessa uma crise paradigmática provocada pela teoria do risco. O Estado de Direito, que já foi centrado na idéia da liberdade e do bem-estar social, cada vez mais passa a ser definido pela distribuição de riscos. O risco passa a ser a medida de uma outra concepção de Estado, a qual, por falta de uma terminologia específica, venho denominando Estado de Risco.
A questão do Estado de Risco vai muito além da simples nomenclatura. Como foi destacado no post anterior do Prof. Ribas, a noção de sociedade de risco impõe uma nova leitura do político e do conceito de poder. O risco, como as pesquisas de Luhmann e Slovic demonstraram, é mais do que uma simples relação probabilística de dano, incorporando uma construção bem mais complexa, fruto da percepção social e psicológica.
Sendo o Direito um dos principais meios utilizados pela sociedade para instrumentalizar relações de poder, seria inevitável que as transformações da sociedade de risco tivessem reflexos sobre os desenvolvimentos legislativos e – especialmente no que toca o objetivo deste blog – sobre as decisões judiciais.
A decisão do STF sobre o caso da Transposição do Rio São Francisco é um bom exemplo desse fenômeno. É importante destacar que a decisão da Transposição não se resumiu ao risco ecológico. O risco é colocado tanto na linguagem dos que defendiam a transposição (o risco de prejudicar o andamento das obras, o risco à população que seria beneficiada pela transposição) quanto na dos que eram contrários a esta (risco inerente à imprevisibilidade das consequências ecológicas). A decisão mostra não só que o risco vem se tornando a medida do Direito, o denominador comum da argumentação jurídica, mas também que a discussão sobre o risco engloba uma subjacente disputa entre valores conflitantes (no caso, desenvolvimento econômico v. meio-ambiente equilibrado).
O relacionamento entre o Estado de Risco e as recentes decisões do STF não se exaure nas causas ambientais, como a da Transposição. O leitor que vai além das ementas e investiga os votos pode perceber que o debate sobre riscos conflitantes está presente, por exemplo, no caso da Aposentadoria dos Inativos, no caso das Células-Tronco, e, principalmente, nas decisões de Suspensão de Segurança, instrumento cada vez mais utilizado na Corte.
O Estado de Risco coloca o paradigma do Estado de Direito em crise. Em primeiro lugar, vêm as questões técnicas. Normalmente as questões classicamente relacionadas ao risco eram atribuídas a um corpo de experts, e as políticas públicas e decisões judiciais tinham como “segura” a questão de fato subjacente. Todavia, a evolução das chamadas “ciências duras” trouxe indeterminação ao invés de determinação. As decisões judiciais e regulatórias se encontram não raramente frente à falta de qualquer consenso científico: há opiniões respeitáveis em todos os sentidos (vide o debate promovido pelo STF no caso das Células-Tronco). Com isso, essas decisões deixam de ser simplesmente jurídicas para cada vez mais assumir um papel político, com um elevado aumento de discricionariedade – e poder – colocado nas mãos de órgãos estatais não eleitos democraticamente.
Outro reflexo importante sobre a justificação do Direito está nas decisões consequencialistas, notadamente nas Suspensões de Segurança. Note-se que nessas decisões uma liminar, antecipação de tutela ou mesmo uma sentença em mandado de segurança perfeita sob o ponto de vista jurídico pode ser suspensa por força de riscos classicamente considerados “extra-jurídicos”. Como afirmou o Tribunal na SS-AgR 3232 / TO, “na suspensão de segurança não se aprecia, em princípio, o mérito do processo principal, mas tão-somente a ocorrência dos aspectos relacionados à potencialidade lesiva do ato decisório em face dos interesses públicos relevantes consagrados em lei, quais sejam, a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas”.
Esta discussão certamente extrapola os limites deste post, mas em breve será publicado um artigo com os levantamentos iniciais da pesquisa, para desde já iniciar o peer-review. De qualquer modo, convido os interessados em discutir esse tema específico a conhecer o website da pesquisa: www.estadoderisco.org.
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