O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, indeferiu liminar na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 129-3/DF pedida pelo Partido Popular Socialista (PPS). O partido pretendia, com a ação, impedir o sigilo sobre movimentação de créditos com despesas confidenciais por parte do governo com os cartões corporativos.
O argumento sustentado na ação é de que o artigo 86 do Decreto-Lei nº 200/67, que instituiu o sigilo, não teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988, por confrontar o previsto no artigo 5º (incisos XXXIII e LX). Neste artigo, a Constituição prevê a publicidade dos atos da administração pública como regra e diz que o sigilo só pode ser decretado quando envolver questão de segurança da sociedade e do Estado.
Ao analisar o caso, o relator ministro Ricardo Lewandowski, observou que os requisitos necessários para a concessão da liminar não estão presentes na ADPF 129. Ele explicou que o princípio da publicidade na administração pública não é absoluto, uma vez que a própria Constituição restringiu o acesso público a informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
“Em outras palavras, tanto o dispositivo contestado na presente ação, quanto o art. 5º, XXXIII, da Lei Maior, ressalvaram o caráter sigiloso de determinadas informações relativas à Administração Pública”, frisou o relator.
O ministro Lewandowski entendeu que não se justifica a concessão da liminar “porque o sigilo dos dados e informações da administração pública, ao menos numa primeira análise da questão, encontra guarida na própria Carta Magna, seja porque ele não é decretado arbitrariamente, mas determinado segundo regras legais pré-estabelecidas”.
No entanto, parece não ser acertada a decisão nos seus fundamentos.
Primeiro, sendo a parte final do art. 5º, inciso XXXIII da Constituição Federal exceção ao princípio da publicidade administrativa, a interpretação deve ser restritiva e somente se justifica no caso concreto na exata medida em que os motivos para o sigilo guardem uma relação de adequação e necessidade com a finalidade pública da norma jurídica. Isto não ocorre no caso concreto, pois o art. 86 do Decreto-Lei nº 200/67 foi editado sob um regime de exceção em que a velha máxima das “razões de Estado” justificava todos os atos de governo, especialmente os restritivos de direitos individuais. A norma possui, portanto, um vício de finalidade intransponível.
Segundo, o princípio da publicidade ou transparência tem se destacado como o mais relevante na transição da Administração Pública burocrática para gerencial, pois dá efetividade aos princípios da participação popular e o da impessoalidade, permitindo a aplicação do controle social da Administração Pública.
Nesse sentido, ressalta Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que “a experiência tem demonstrado que os controles estatais existentes estão longe de serem suficientes para garantir uma reta administração pública; primeiro porque eles também tendem a se burocratizar, segundo, por se mostrarem pouco eficientes e, terceiro, por se tornarem cada vez mais dispendiosos. Por outro lado, os controles sociais sobre a administração pública, sempre que abertos através de instrumentos participativos, ganham popularidade, passam a ser empenhadamente exercitados, sendo, em geral, bastante eficientes, pois multiplicam o número de fiscais sem ônus para os contribuintes, e têm ponderável efeito pedagógico, no sentido de desenvolver um sadio espírito cívico”. (Mutações do Direito Administrativo)
Ademais, a decisão em comento põem em risco o próprio regime democrático e da representação política, pois a confiança da sociedade no governo e nas instituições (trust) exige a transparência absoluta na atuação e justificação dos motivos enquanto lhes seja exigido ou posto em dúvida. (Eduardo Garcia de Enterría, Democracia, Jueces y Control de la Administracion).
Os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio já se manifestaram publicamente contra o sigilo das despesas da Presidência da República com os cartões corporativos e a alegação de segurança. (Ministros do STF são contra sigilo de cartão. Folha de São Paulo, 12.2.08). Espera-se, portanto, que a decisão possa ser revista em plenário.
2 comentários:
Embora concorde com os argumentos do Prof. Diogo de Figueiredo Moreira Neto transcritos no post, não considero que a decisão do relator seja equivocada.
Em primeiro lugar, trata-se de um pedido de liminar em ação de controle concentrado de constitucionalidade. Para que um relator, ainda sem o aval do Pleno STF, tome decisão no sentido de modificar uma política pública, alguns parâmetros devem estar presentes, como, por exemplo, uma grave violação de direitos fundamentais, e, principalmente, a possibilidade de perecimento do direito se a medida não for imediatamente adotada. Salvo opiniões em contrário, não é esse o caso da ADPF 129, principalmente quanto ao quesito urgência. As despesas cuja publicidade é discutida já foram realizadas e a possibilidade de controle dos gatos públicos não perecerá por se aguardar a manifestação do Pleno.
Quanto ao princípio da publicidade propriamente dito, vale a lição do juiz americano Louis Brandeis (1856-1941), citado por Elio Gaspari: “A luz do sol é o melhor dos desinfetantes”. Todavia, também é certo que o texto constitucional explicitamente prevê exceções ao princípio da publicidade. Dessa forma, parece-me arriscada a tática adotada na ação do PPS, pois coloca para o STF uma decisão do tipo tudo-ou-nada, quando o princípio constitucional admite gradações não só por sua natureza como por sua redação. Há argumentos para apontar exceções a esse princípio qualquer que seja a filiação teórica: positivismo, pós-positivismo, neoconstitucionalismo, ou jusnaturalismo. É bem mais provável (embora não se possa ter certeza) que o Pleno reafirmará a possibilidade de exceções ao princípio da publicidade. A conseqüência pode ser a reafirmação da discricionariedade do Executivo e uma maior opacidade dos gastos públicos.
Por fim, parece-me que a ação ataca erroneamente o DL 200/67, pois a parte final do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 5o da Constituição Federal foi regulamentado pela Lei 11.111/2005:
Art. 1o Esta Lei regulamenta a parte final do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 5o da Constituição Federal.
Art. 2o O acesso aos documentos públicos de interesse particular ou de interesse coletivo ou geral será ressalvado exclusivamente nas hipóteses em que o sigilo seja ou permaneça imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, nos termos do disposto na parte final do inciso XXXIII do caput do art. 5o da Constituição Federal.
Art. 3o Os documentos públicos que contenham informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado poderão ser classificados no mais alto grau de sigilo, conforme regulamento.
Art. 4o O Poder Executivo instituirá, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, com a finalidade de decidir sobre a aplicação da ressalva ao acesso de documentos, em conformidade com o disposto nos parágrafos do art. 6o desta Lei.
Art. 5o Os Poderes Legislativo e Judiciário, o Ministério Público da União e o Tribunal de Contas da União disciplinarão internamente sobre a necessidade de manutenção da proteção das informações por eles produzidas, cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, bem como a possibilidade de seu acesso quando cessar essa necessidade, observada a Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991, e o disposto nesta Lei.
Art. 6o O acesso aos documentos públicos classificados no mais alto grau de sigilo poderá ser restringido pelo prazo e prorrogação previstos no § 2o do art. 23 da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991.
§ 1o Vencido o prazo ou sua prorrogação de que trata o caput deste artigo, os documentos classificados no mais alto grau de sigilo tornar-se-ão de acesso público.
§ 2o Antes de expirada a prorrogação do prazo de que trata o caput deste artigo, a autoridade competente para a classificação do documento no mais alto grau de sigilo poderá provocar, de modo justificado, a manifestação da Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas para que avalie se o acesso ao documento ameaçará a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacionais do País, caso em que a Comissão poderá manter a permanência da ressalva ao acesso do documento pelo tempo que estipular.
[...]
A meu ver, a questão principal dessa ADPF será o controle de legitimidade dos conceitos jurídicos indeterminados previstos na Lei n. 11.111/05. Que os princípios constitucionais admitem exceções ou gradações não há dúvida e também acredito que o plenário no julgamento do mérito reafirmará essa possibilidade. Porém, a questão de fundo que o STF terá que decidir é: qual a margem de liberdade do executivo para classificar determinados atos como sigilosos em função da segurança do Estado? O Estado democrático de direito admite o sigilo para todo e qualquer ato administrativo, sob a simples alegação de "segurança do estado"? Cabe ao STF esse papel ou a questão é de controle de legalidade? Penso que, independentemente de qual seja o meio de controle mais adequado para o caso concreto, o simples fato do governo ter classificado os gastos públicos referidos como sigilosos, sem qualquer motivação explícita quanto à existência da adequação e necessidade da medida, seria mais do que suficiente para, em decisão liminar, suspender os efeitos do ato governamental. Por outro lado, não concordo com o relator quando afirma não existir o perigo da demora. A divulgação dos gastos públicos com os cartões corporativos parece-me estritamente necessária e urgente, não só para fins de apuração da resposanbilidade política dos agentes públicos, como para a efetiva confiança legitima dos cidadãos no governo. Trata-se de despesa pública originária de receita tributária cuja destinação pode estar sendo desviada para fins outros que não aqueles previsto na legislação que regulamenta o uso dos cartões. Cabe ressaltar, por último, que essa mesma Lei n. 11.111/05 classificou os documentos do antigo SNI, atualmente em poder da AbIN, como sigilosos, impedindo que os familiares dos desaparecidos na ditadura militar possam ser indenizados. Vejo nessa decisão do governo não uma discricionariedade, que se usada corretamente legitima a decisão, mas uma arbitráriedade comparável à da ditadura militar. Diferentemente do colega Alceu, penso que o STF estará sensível a essa problemática, especialmente após o ativismo de 2007, e não aceitará esse abuso de direito, caso conheça da ADPF no seu mérito.
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