domingo, 15 de maio de 2011

Oceano Processual

Oceano processual
Ministro fala da sobrecarga de processos no Judiciário e da luta do STF pelo Estado laico
15 de maio de 2011
Laura Greenhalgh - O Estado de S.Paulo
Oceano processual
Ministro fala da sobrecarga de processos no Judiciário e da luta do STF pelo Estado laico
15 de maio de 2011
Laura Greenhalgh - O Estado de S.Paulo
WASHINGTON


Num dos imponentes salões da Biblioteca do Congresso dos EUA, em Washington, entre afrescos, obras de arte e móveis de época, um grupo de juízes brasileiros e americanos reuniu-se por dois dias nessa semana para debater um temário que abrangia de abstrações em torno do conceito de democracia ao relato minucioso de casos de tráfico de influência, desvio de verbas públicas, compra de votos, lavagem de dinheiro e outros delitos rombudos acontecidos em ambos os países. À entrada do salão uma discreta placa informava a natureza do evento: "Brazil-United States Judicial Dialogue".

Realizado pela primeira vez em 1998 e repetido agora por iniciativa do Woodrow Wilson International Center for Scholars e da Georgetown University, esse diálogo não governamental entre Judiciários dos dois países reuniu, da parte brasileira, uma delegação reforçada - dois ex-presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF), os ministros Ellen Gracie e Gilmar Mendes, além do atual, ministro Cezar Peluso, e ainda o colega Ricardo Lewandowski, que acumula a presidência do Superior Tribunal Eleitoral (STE), fora magistrados, professores de direito e advogados de renome. Do lado americano, nem a presença de Clifford Wallace, veterano juiz da Corte de Apelações dos EUA, conseguiu balancear o encontro, que acabou pendendo para o contexto brasileiro.

Nesta entrevista exclusiva concedida ao fim de uma jornada de discussões em Washington, o ministro Peluso admite: a troca de experiências no campo legal é importante, talvez fundamental, desde que respeitadas as diferenças entre os dois países. "É claro que os americanos conhecem o volume impressionante de casos em tramitação na Justiça brasileira. E eles até tentam sugerir soluções. Mas a verdade é que só agora nós começamos a discutir essa crise na sua complexidade", afirma Peluso, cuja missão no momento é levar adiante a chamada PEC dos Recursos, visando a aliviar a sobrecarga de casos em julgamento nas cortes superiores - STF e STJ. Neste ponto, a comparação é acachapante: enquanto os juízes do Supremo precisam decidir em torno de 80 mil casos por ano, seus colegas americanos se concentram no julgamento de apenas uma centena.

O presidente do STF também fala da recente votação por unanimidade sobre direitos da união homoafetiva, reclama maior reconhecimento público de outra votação histórica da Casa, a da liberação das células-tronco embrionárias para pesquisa científica, e diz que o Supremo não tem por que ceder a pressões de grupos religiosos na votação de outras questões polêmicas, como a autorização para aborto de fetos anencéfalos: "Nossa decisão sempre buscará reforçar a laicidade do Estado brasileiro".

Ministro, que impressão fica para o senhor desse diálogo entre magistrados americanos e brasileiros?

Uma boa impressão. Tanto a exposição dos brasileiros quanto dos americanos surpreenderam pela tentativa de buscar pontos de contato, embora os dois lados tenham conhecimento das particularidades de cada sistema judiciário.

Os juízes americanos parecem se impressionar com o alto número de processos tramitando na Justiça brasileira.

Não, eles não estranham porque os números do Judiciário brasileiro são conhecidos internacionalmente, tanto que o juiz Clifford Wallace fez referência a sistemas com volume de casos igual ou superior ao nosso, como o da Índia, com mais de 300 mil processos tramitando anualmente na Suprema Corte. Os juízes americanos procuram entender esse quadro para oferecer sugestões, mas trata-se de uma discussão que só recentemente vem sendo feita pelo Conselho Nacional de Justiça. Tem a ver com mudança de mentalidade na magistratura e na formação dos juízes. Os jovens saem da faculdade razoavelmente preparados para discutir questões do direito, mas sem noção de como lidar com a administração de um processo. Entram num concurso de magistratura, são aprovados e no dia seguinte passam a julgar. Ampliado para todo o sistema, gera-se uma lentidão tremenda.

Isso vem ao encontro da sua missão neste momento, ao apresentar a PEC dos Recursos como forma de descongestionar tanto o STF quanto o STJ, ou seja, grande parte das decisões julgadas pelos tribunais de segunda instância não subiria para os tribunais superiores. Mas com isso o senhor tornou-se alvo das críticas da OAB, que fala até em cerceamento do direito de defesa.

Não aceito a crítica de que o projeto coloca em risco a liberdade do indivíduo. Nos últimos dois anos, num universo de 70 mil processos levados ao Supremo, os recursos extraordinários na área criminal foram 5.700, menos de 10%. Destes, deu-se provimento a apenas 155. Destes 155, 77 foram recursos do Ministério Público, ou seja, o provimento do Supremo foi em favor da acusação, o que agravou a situação dos réus. Houve apenas um caso em que se deu provimento em favor do réu. Um caso! Isso mostra que não há risco para a liberdade do indivíduo. A proposta também não mexe no habeas corpus, como não elimina o recurso extraordinário. Onde está a mudança? Está em que a admissibilidade dos recursos não impedirá o trânsito em julgado. Se alguém for condenado, já vai, a partir da decisão do tribunal local, cumprir pena, mesmo se vier a usar o recurso extraordinário.

Limitar recursos resolveria a protelação no Judiciário?

Não é só protelação, há uma cultura da litigância no Brasil que tem a ver com a formação profissional. Nossos estudantes de direito são preparados para litigar. Existem no currículo das faculdades cursos específicos de conciliação, mediação e arbitragem? Que eu saiba, não. Os estudantes não são preparados para usar instrumentos da negociação. São formados na cultura dos adversários. Ou dos gladiadores, como bem disse o jurista americano Jon Mills.

O estudo Supremo em Números mostra que os grandes litigantes no Brasil são INSS, órgãos públicos federais, estaduais e municipais, bancos e telefônicas. Então, já se sabe quem congestiona o Judiciário.

Há um lado positivo nesses levantamentos, pois permitem que se faça um diagnóstico preciso dos pontos de estrangulamento do sistema. E, ao ficar claro quem são os maiores litigantes, eles próprios repensam suas atividades, de modo a não arcar com essa sobrecarga. Até porque há uma responsabilidade social na lentidão do Judiciário. Não é à toa que nenhum dos grandes litigantes criticou os termos da PEC. Curioso, não?

O Supremo tem sido acusado de hiperativismo no controle constitucional, ao mesmo tempo que reclama do volume de casos com que precisa lidar. Enfim, para que direção aponta a Casa?

O Supremo sempre aponta para os interesses gerais da sociedade. Essa acusação de ativismo não é exclusiva da Suprema Corte do Brasil. Nos EUA, sérios problemas que deveriam ter sido resolvidos no plano legislativo, ou na área administrativa, só tiveram solução social satisfatória com a intervenção da Suprema Corte. Foi assim inclusive com o racismo. No Brasil lidamos com uma Constituição analítica, bem diferente da americana, com seus poucos artigos. A nossa Carta cuida de uma série de matérias que poderiam ser regidas por lei ordinária. E isso tem explicação: a Constituição de 88 foi editada após longo período de autoritarismo, quando os constituintes resolveram regular tudo. Daí o Supremo ser acionado com tanta frequência. E, veja bem, uma vez acionado, ele decide. Isso já foi chamado de "ativismo judicial a convite constitucional", o que é apropriado. Só que o Supremo não dá motivos para acusações de partidarismo. Mesmo lidando com questões políticas, age com independência, ao contrário do que se ouve falar de outras cortes. Eu diria mais: quando decisões da Corte chamam a atenção da opinião pública é porque as matérias tratadas representam divisões dentro da sociedade brasileira. Falo de temas como aborto, células-tronco, fetos anencéfalos, direitos dos homoafetivos.

O reconhecimento desses direitos foi dado pelo Supremo, mas setores contrários continuam a se manifestar...

E como é que uma decisão sobre um tema que divide a sociedade pode não gerar polêmica? Vai gerar, não vai agradar a todo mundo. O fundamental é que a Corte trouxe uma decisão que traz segurança jurídica à sociedade. E uma decisão que também vai ajudar no combate a comportamentos violentos, antissociais, homofóbicos.

Ao decidir por unanimidade essa questão, o Supremo deve ter incomodado setores mais conservadores, mas também agradou aos liberais. Esse julgamento vai ter impacto em outras decisões da Corte sobre temas igualmente polêmicos, como a interrupção da gravidez em casos de anencéfalos?

Uma decisão não muda o Supremo, pois ele decide apegado às suas convicções e normas. Mas uma decisão causa impacto social, porque a sociedade entende que o Supremo não teme tomar decisões compatíveis com a Constituição, a despeito da oposição de certos setores.

Nem pressões vindas do campo religioso podem abalar o julgador?

Não. Ao julgar, o Supremo reforça o caráter laico do ordenamento jurídico. E a independência da Corte vai ao ponto de enfrentar as resistências religiosas em nome da laicidade do Estado.

Foi o que aconteceu na decisão sobre liberar as células-tronco embrionárias para a pesquisa científica, não?

Considero esse julgamento importantíssimo, embora confesse que ali cometemos o mais grave erro de comunicação desde o tempo em que assumi a presidência do STF. O resultado da decisão foi 9 a 1. Só tivemos o voto contrário do ministro Carlos Alberto Direito, falecido em 2009. Mas foi parar na imprensa a versão de que houve três votos independentes da maioria, inclusive o meu. O que fiz no meu voto? Eu disse, e o Ministério da Saúde adotou como orientação, que era preciso estabelecer certos limites éticos para a realização das pesquisas, mas jamais disse que era contra as pesquisas!

Ao decidirem contra a revisão da Lei de Anistia, os membros da Corte atingiram resultado de 7 a 2. Já no caso da Ficha Limpa, o placar foi apertado: 5 a 4. E há decisões unânimes. É possível mapear os momentos em que a Corte vota unida e em que se divide?

Não há isso, diferentemente do caso americano. Há na Suprema Corte dos EUA duas alas definidas: a mais conservadora e outra mais liberal, o que corresponde ao desenho político da vida partidária americana. E também há sempre um juiz que flutua entre um lado e outro. O STF reflete uma largueza de visões que não se prende ao nosso sistema político partidário. Você pode até dizer que há um juiz mais rigoroso em matéria criminal e mais flexível em matéria civil, ou vice-versa, mas para por aí. Eu não chegaria a dizer que o comportamento da Corte é imprevisível. Mas também não é rotulado.

O senhor sente uma ponta de inveja quando vê que seus colegas americanos julgam em torno de cem casos por ano, apenas?

Pois é, a Suprema Corte nos EUA tem poder para examinar um caso e não abrigá-lo para julgamento, inclusive justificando que decisões de outros tribunais sobre o mesmo tema são boas e suficientes para a matéria. O instrumento da ''repercussão geral'' já permite ao STF fazer isso no Brasil. Equivale a dizer ''muito bem, a matéria é constitucional, mas não tem relevância para a sociedade, portanto não vamos tratar disso''. Mas ainda não usamos devidamente esse instrumento. Nossa tendência é acolher mais do que seria devido. Como se vê, o Supremo também tem um longo aprendizado pela frente.



WASHINGTON


Num dos imponentes salões da Biblioteca do Congresso dos EUA, em Washington, entre afrescos, obras de arte e móveis de época, um grupo de juízes brasileiros e americanos reuniu-se por dois dias nessa semana para debater um temário que abrangia de abstrações em torno do conceito de democracia ao relato minucioso de casos de tráfico de influência, desvio de verbas públicas, compra de votos, lavagem de dinheiro e outros delitos rombudos acontecidos em ambos os países. À entrada do salão uma discreta placa informava a natureza do evento: "Brazil-United States Judicial Dialogue".

Realizado pela primeira vez em 1998 e repetido agora por iniciativa do Woodrow Wilson International Center for Scholars e da Georgetown University, esse diálogo não governamental entre Judiciários dos dois países reuniu, da parte brasileira, uma delegação reforçada - dois ex-presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF), os ministros Ellen Gracie e Gilmar Mendes, além do atual, ministro Cezar Peluso, e ainda o colega Ricardo Lewandowski, que acumula a presidência do Superior Tribunal Eleitoral (STE), fora magistrados, professores de direito e advogados de renome. Do lado americano, nem a presença de Clifford Wallace, veterano juiz da Corte de Apelações dos EUA, conseguiu balancear o encontro, que acabou pendendo para o contexto brasileiro.

Nesta entrevista exclusiva concedida ao fim de uma jornada de discussões em Washington, o ministro Peluso admite: a troca de experiências no campo legal é importante, talvez fundamental, desde que respeitadas as diferenças entre os dois países. "É claro que os americanos conhecem o volume impressionante de casos em tramitação na Justiça brasileira. E eles até tentam sugerir soluções. Mas a verdade é que só agora nós começamos a discutir essa crise na sua complexidade", afirma Peluso, cuja missão no momento é levar adiante a chamada PEC dos Recursos, visando a aliviar a sobrecarga de casos em julgamento nas cortes superiores - STF e STJ. Neste ponto, a comparação é acachapante: enquanto os juízes do Supremo precisam decidir em torno de 80 mil casos por ano, seus colegas americanos se concentram no julgamento de apenas uma centena.

O presidente do STF também fala da recente votação por unanimidade sobre direitos da união homoafetiva, reclama maior reconhecimento público de outra votação histórica da Casa, a da liberação das células-tronco embrionárias para pesquisa científica, e diz que o Supremo não tem por que ceder a pressões de grupos religiosos na votação de outras questões polêmicas, como a autorização para aborto de fetos anencéfalos: "Nossa decisão sempre buscará reforçar a laicidade do Estado brasileiro".

Ministro, que impressão fica para o senhor desse diálogo entre magistrados americanos e brasileiros?

Uma boa impressão. Tanto a exposição dos brasileiros quanto dos americanos surpreenderam pela tentativa de buscar pontos de contato, embora os dois lados tenham conhecimento das particularidades de cada sistema judiciário.

Os juízes americanos parecem se impressionar com o alto número de processos tramitando na Justiça brasileira.

Não, eles não estranham porque os números do Judiciário brasileiro são conhecidos internacionalmente, tanto que o juiz Clifford Wallace fez referência a sistemas com volume de casos igual ou superior ao nosso, como o da Índia, com mais de 300 mil processos tramitando anualmente na Suprema Corte. Os juízes americanos procuram entender esse quadro para oferecer sugestões, mas trata-se de uma discussão que só recentemente vem sendo feita pelo Conselho Nacional de Justiça. Tem a ver com mudança de mentalidade na magistratura e na formação dos juízes. Os jovens saem da faculdade razoavelmente preparados para discutir questões do direito, mas sem noção de como lidar com a administração de um processo. Entram num concurso de magistratura, são aprovados e no dia seguinte passam a julgar. Ampliado para todo o sistema, gera-se uma lentidão tremenda.

Isso vem ao encontro da sua missão neste momento, ao apresentar a PEC dos Recursos como forma de descongestionar tanto o STF quanto o STJ, ou seja, grande parte das decisões julgadas pelos tribunais de segunda instância não subiria para os tribunais superiores. Mas com isso o senhor tornou-se alvo das críticas da OAB, que fala até em cerceamento do direito de defesa.

Não aceito a crítica de que o projeto coloca em risco a liberdade do indivíduo. Nos últimos dois anos, num universo de 70 mil processos levados ao Supremo, os recursos extraordinários na área criminal foram 5.700, menos de 10%. Destes, deu-se provimento a apenas 155. Destes 155, 77 foram recursos do Ministério Público, ou seja, o provimento do Supremo foi em favor da acusação, o que agravou a situação dos réus. Houve apenas um caso em que se deu provimento em favor do réu. Um caso! Isso mostra que não há risco para a liberdade do indivíduo. A proposta também não mexe no habeas corpus, como não elimina o recurso extraordinário. Onde está a mudança? Está em que a admissibilidade dos recursos não impedirá o trânsito em julgado. Se alguém for condenado, já vai, a partir da decisão do tribunal local, cumprir pena, mesmo se vier a usar o recurso extraordinário.

Limitar recursos resolveria a protelação no Judiciário?

Não é só protelação, há uma cultura da litigância no Brasil que tem a ver com a formação profissional. Nossos estudantes de direito são preparados para litigar. Existem no currículo das faculdades cursos específicos de conciliação, mediação e arbitragem? Que eu saiba, não. Os estudantes não são preparados para usar instrumentos da negociação. São formados na cultura dos adversários. Ou dos gladiadores, como bem disse o jurista americano Jon Mills.

O estudo Supremo em Números mostra que os grandes litigantes no Brasil são INSS, órgãos públicos federais, estaduais e municipais, bancos e telefônicas. Então, já se sabe quem congestiona o Judiciário.

Há um lado positivo nesses levantamentos, pois permitem que se faça um diagnóstico preciso dos pontos de estrangulamento do sistema. E, ao ficar claro quem são os maiores litigantes, eles próprios repensam suas atividades, de modo a não arcar com essa sobrecarga. Até porque há uma responsabilidade social na lentidão do Judiciário. Não é à toa que nenhum dos grandes litigantes criticou os termos da PEC. Curioso, não?

O Supremo tem sido acusado de hiperativismo no controle constitucional, ao mesmo tempo que reclama do volume de casos com que precisa lidar. Enfim, para que direção aponta a Casa?

O Supremo sempre aponta para os interesses gerais da sociedade. Essa acusação de ativismo não é exclusiva da Suprema Corte do Brasil. Nos EUA, sérios problemas que deveriam ter sido resolvidos no plano legislativo, ou na área administrativa, só tiveram solução social satisfatória com a intervenção da Suprema Corte. Foi assim inclusive com o racismo. No Brasil lidamos com uma Constituição analítica, bem diferente da americana, com seus poucos artigos. A nossa Carta cuida de uma série de matérias que poderiam ser regidas por lei ordinária. E isso tem explicação: a Constituição de 88 foi editada após longo período de autoritarismo, quando os constituintes resolveram regular tudo. Daí o Supremo ser acionado com tanta frequência. E, veja bem, uma vez acionado, ele decide. Isso já foi chamado de "ativismo judicial a convite constitucional", o que é apropriado. Só que o Supremo não dá motivos para acusações de partidarismo. Mesmo lidando com questões políticas, age com independência, ao contrário do que se ouve falar de outras cortes. Eu diria mais: quando decisões da Corte chamam a atenção da opinião pública é porque as matérias tratadas representam divisões dentro da sociedade brasileira. Falo de temas como aborto, células-tronco, fetos anencéfalos, direitos dos homoafetivos.

O reconhecimento desses direitos foi dado pelo Supremo, mas setores contrários continuam a se manifestar...

E como é que uma decisão sobre um tema que divide a sociedade pode não gerar polêmica? Vai gerar, não vai agradar a todo mundo. O fundamental é que a Corte trouxe uma decisão que traz segurança jurídica à sociedade. E uma decisão que também vai ajudar no combate a comportamentos violentos, antissociais, homofóbicos.

Ao decidir por unanimidade essa questão, o Supremo deve ter incomodado setores mais conservadores, mas também agradou aos liberais. Esse julgamento vai ter impacto em outras decisões da Corte sobre temas igualmente polêmicos, como a interrupção da gravidez em casos de anencéfalos?

Uma decisão não muda o Supremo, pois ele decide apegado às suas convicções e normas. Mas uma decisão causa impacto social, porque a sociedade entende que o Supremo não teme tomar decisões compatíveis com a Constituição, a despeito da oposição de certos setores.

Nem pressões vindas do campo religioso podem abalar o julgador?

Não. Ao julgar, o Supremo reforça o caráter laico do ordenamento jurídico. E a independência da Corte vai ao ponto de enfrentar as resistências religiosas em nome da laicidade do Estado.

Foi o que aconteceu na decisão sobre liberar as células-tronco embrionárias para a pesquisa científica, não?

Considero esse julgamento importantíssimo, embora confesse que ali cometemos o mais grave erro de comunicação desde o tempo em que assumi a presidência do STF. O resultado da decisão foi 9 a 1. Só tivemos o voto contrário do ministro Carlos Alberto Direito, falecido em 2009. Mas foi parar na imprensa a versão de que houve três votos independentes da maioria, inclusive o meu. O que fiz no meu voto? Eu disse, e o Ministério da Saúde adotou como orientação, que era preciso estabelecer certos limites éticos para a realização das pesquisas, mas jamais disse que era contra as pesquisas!

Ao decidirem contra a revisão da Lei de Anistia, os membros da Corte atingiram resultado de 7 a 2. Já no caso da Ficha Limpa, o placar foi apertado: 5 a 4. E há decisões unânimes. É possível mapear os momentos em que a Corte vota unida e em que se divide?

Não há isso, diferentemente do caso americano. Há na Suprema Corte dos EUA duas alas definidas: a mais conservadora e outra mais liberal, o que corresponde ao desenho político da vida partidária americana. E também há sempre um juiz que flutua entre um lado e outro. O STF reflete uma largueza de visões que não se prende ao nosso sistema político partidário. Você pode até dizer que há um juiz mais rigoroso em matéria criminal e mais flexível em matéria civil, ou vice-versa, mas para por aí. Eu não chegaria a dizer que o comportamento da Corte é imprevisível. Mas também não é rotulado.

O senhor sente uma ponta de inveja quando vê que seus colegas americanos julgam em torno de cem casos por ano, apenas?

Pois é, a Suprema Corte nos EUA tem poder para examinar um caso e não abrigá-lo para julgamento, inclusive justificando que decisões de outros tribunais sobre o mesmo tema são boas e suficientes para a matéria. O instrumento da ''repercussão geral'' já permite ao STF fazer isso no Brasil. Equivale a dizer ''muito bem, a matéria é constitucional, mas não tem relevância para a sociedade, portanto não vamos tratar disso''. Mas ainda não usamos devidamente esse instrumento. Nossa tendência é acolher mais do que seria devido. Como se vê, o Supremo também tem um longo aprendizado pela frente.

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