Entrevista de Peter Häberle Conjur 30 de maio de 2011
"Constituição é declaração de amor ao país"Por Marília Scriboni e Rodrigo HaidarNo dia 28 de agosto de 2008 a advogada Joênia Batista de Carvalho fez história: ela se tornou a primeira índia brasileira a fazer sustentação oral no Supremo Tribunal Federal. Por trás desse fato histórico, está o pensamento de um dos mais destacados constitucionalistas contemporâneos e um dos mais influentes doutrinadores do Judiciário brasileiro. Trata-se do alemão Peter Häberle, o criador do amicus curiae, o instituto jurídico que permitiu a Joênia ocupar a tribuna do Supremo no julgamento sobre a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Häberle sustenta que a Constituição é capaz de prescrever valores que fundamentam culturalmente uma sociedade aberta. Grosso modo, é o mesmo que dizer que a Carta Magna é um processo aberto, um projeto para o futuro.
Na lucidez de seus 77 anos, Häberle conversou com a reportagem da Consultor Jurídico duas vezes na semana passada, no que resultou a entrevista que segue abaixo. A primeira delas foi na segunda-feira (23/5), em São Paulo, num intervalo do Encontro Brasil-União Europeia, promovido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. No dia seguinte ele voltou a falar com a ConJur, desta vez em Brasília, onde estava para participar do Seminário Internacional Constituição e Direitos Fundamentais.
Häberle fala de Constituição com amor. E do Brasil também. No meio da entrevista, abriu uma pausa para fazer uma declaração de amor ao país que visita pela terceira vez. Começou fazendo uma correção necessária, a seu ver: “O escritor austríaco Stefan Zweig escreveu que o Brasil é o país do futuro. Na minha opinião, o Brasil é o país do presente e do futuro”.
O professor rejeita dois termos da moda para classificar os países: 'emergente' e 'em desenvolvimento'. Para ele, essas expressões levam em conta apenas o que chama de “economicização”. E dá como exemplo o Brasil 'emergente' e o Peru 'em desenvolvimento': “Pra mim importa tão somente que o Brasil e o Peru sejam Estados constitucionais. Em outras palavras, importa que eles são países que reconhecem a dignidade da pessoa humana, que contêm um catálogo de direitos humanos, que prezam a democracia pluralista, a divisão dos poderes, a proteção das minorias, e que dispõem de uma jurisdição constitucional em boas condições de funcionamento”.
As palavras coincidem com o que ele escreve em sua obra Constitución como cultura (1982). De acordo com o professor, a Constituição não é apenas um “texto jurídico ou um código normativo, mas também a expressão de um nível de desenvolvimento cultural” e um instrumento da “representação cultural autônoma de um povo”.
Leia a entrevista abaixo:
ConJur — Qual imagem o senhor tem do Supremo Tribunal Federal?
Peter Häberle — Eu sou um grande admirador do Supremo Tribunal Federal e do ministro Gilmar Mendes, que é um constitucionalista líder no Brasil. Eu gosto de caracterizá-lo na Europa com um construtor de pontes entre a Alemanha e o Brasil, e entre o STF, sobretudo, e o Direito Processual Constitucional. Ele recepcionou a minha proposta do amicus curiae, por exemplo.
ConJur — E isso tem a ver com o conceito que o senhor desenvolveu no livro Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição e que foi traduzido pelo ministro Gilmar Mendes, certo?
Häberle — Sim, essa idéia também é proposta pela sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Trata-se de um livro que escrevi em 1975 e que foi excelentemente traduzido e comentado pelo ministro Gilmar Mendes. Poderíamos dizer, no sentido filosófico, que a idéia da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição significa que toda e qualquer pessoa que leia livremente a Constituição acaba sendo co-intérprete do texto. Essa idéia é a expressão da teologia no protestantismo alemão. Eu só adquiri consciência disso mais tarde, e o paradigma da sociedade aberta hoje pode ser estendido na direção da comunidade internacional, da comunidade de entes do Direito Internacional Público, do Jus Gentium. Coloca-se aqui a pergunta: Quem cria o Direito das Gentes e quem o interpreta? Não são apenas os Estados e não são apenas os grandes doutrinadores. Nesse contexto, os mais importantes intérpretes são organizações não-governamentais, como, por exemplo, o Greenpeace e a Anistia Internacional. O Direito das Gentes é, na minha perspectiva, o Direito Constitucional da Humanidade. Por isso, os 196 membros da ONU são sujeitos imprescindíveis do Direito das Gentes. Mas o Direito das Gentes é também co-desenvolvido por relações pela internet, por tribunais constitucionais de grande qualidade ou também pela Corte Penal Internacional e pelos Tribunais Especiais das Nações Unidas, como os que existem na Holanda e na Iugoslávia.
ConJur — O Brasil experimenta um momento de abertura da jurisdição constitucional, com transmissão ao vivo das sessões do Supremo Tribunal Federal e realização de audiências públicas, por exemplo. O senhor acha que a população pode acreditar que essa Corte tem a missão de representá-la e de atender às suas vontades?
Häberle — Eu acompanho essa democratização com grande entusiasmo e acompanho com igual entusiasmo a tendência de dar publicidade às sessões do STF. Mas tal orientação pode envolver também riscos e perigos. O legislador parlamentar é dotado de legitimação democrática direta, uma vez que é eleito pelo povo, ao passo que os juízes do STF têm legitimidade apenas indireta e mediada. O que me alegra é saber que o Supremo é a expressão de uma sociedade de intérpretes da Constituição que se abre cada vez mais. O STF está em vias de se transformar em um Tribunal do Cidadão. Os jovens tribunais constitucionais precisam investir esforços para criar uma sociedade civil. Vemos quão difícil seria, vemos o quão difícil é implementar essa tarefa na Líbia, por exemplo, e o quão difícil é desenvolver nesses países uma sociedade civil. Para uma sociedade lícita e cidadã, é imprescindível a existência de um Judiciário constitucional concebido como um Judiciário cidadão. Essas audiências públicas são um meio para este fim.
ConJur — O Brasil, nos últimos anos, decidiu temas polêmicos por meio do STF. É o caso das pesquisas com células-tronco e da fidelidade partidária, por exemplo. Esse crescimento da atuação da jurisdição constitucional é resultado da democracia ou a enfraquece?
Häberle — A sua pergunta relaciona dois opostos: o ativismo judicial e a retração dos tribunais. Na verdade, essa pergunta é mais que justificada em todos os Estados constitucionais dotados de um Judiciário constitucional. Comecemos com o caso dos Estados Unidos, onde viveu-se, na Corte Suprema, a idéia do ativismo judicial. O Tribunal Constitucional Alemão também praticou esse ativismo de forma intensa, depois de 1989. Agora vem a argumentação contrária: alguns doutrinadores defendem a idéia de que o juízes deveriam se restringir mais, deixando o primeiro plano e a iniciativa ao legislador parlamentar. É imensamente difícil, até para o juiz do tribunal constitucional, definir quando é a hora do ativismo judicial e quando é a hora da retração judicial. Mas eu quero dar uma resposta. O legislador parlamentar alemão, que eu cito aqui exemplificativamente, na maior parte das vezes não estaria em condições de decidir a questão das células-tronco e da proteção aos embriões. Então, provavelmente, o Tribunal Constitucional Federal tomaria a frente. A instituição do voto especial, que muitas vezes é o voto vencido, deve ser mencionada nesse contexto. Esse instituto foi inventado pelos americanos. O voto vencido hoje é admitido pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão. Isso aparece no artigo 164, parágrafo 1, da Constituição. A instituição do voto especial ou do voto vencido é um caso feliz, é um caso afortunado.
ConJur — Por quê?
Häberle — Para que a minoria social possa espelhar-se no voto vencido. A exemplo do que acontece nos Estados Unidos e na Alemanha, com o decorrer do tempo o voto vencido se transforma em um voto majoritário. Essa é uma dialética importante.
ConJur — O papel essencial de uma corte constitucional é o de ser contramajoritária. Como se encaixa nessa atribuição a tese da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição?
Häberle — O paradigma da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição significa que cada cidadão e cada partido político que vive na Constituição são co-intérpretes desta Constituição. O judiciário constitucional possui legitimação democrática apenas indireta. O primeiro poder da República é o Parlamento. O legislador parlamentar tem legitimidade direta, pois é eleito pelo povo. Por isso é importante que a sociedade também tenha espaço para participar da interpretação da Constituição.
ConJur — No Brasil, os juízes do STF são escolhidos pelo presidente da República que, por sua vez, é eleito diretamente pelo povo. Isso não lhes confere igual legitimidade democrática?
Häberle — Os juízes da Corte Suprema americana ou do Tribunal Constitucional alemão são eleitos pelos partidos políticos. Na Romênia e na Itália, um terço dos juízes constitucionais são nomeados pelo presidente da República. O que é importante em todos esses tribunais é o pluralismo político. Como disse antes, no caso do Brasil, é importante ressaltar que, como no Tribunal Constitucional alemão e na Corte Constitucional espanhola, se admite a figura do voto vencido. Neste voto vencido, o pluralismo da sociedade pode espelhar-se. E o tempo nos ensina que o voto vencido de hoje é o voto majoritário de amanhã.
ConJur — O crescimento da jurisdição constitucional, do qual falamos há pouco, é, então, resultado da democracia?
Häberle — De início, quero dizer duas palavras sobre a história da jurisprudência constitucional, no famoso caso Marbury versus Madison, de 1803, nos Estados Unidos. Ele é considerado a certidão de nascimento da jurisprudência constitucional no sentido material do termo, já que ali foi reconhecido um controle judicial das normas. O segundo grande passo foi a Constituição da Áustria, de 1920, elaborada com a ajuda de Hans Kelsen. A idéia da jurisprudência constitucional já foi desenvolvida pelo grande jurista austro-alemão. Depois da Segunda Guerra Mundial, a jurisdição constitucional estendeu-se pelo mundo inteiro. Penso que apenas a Grécia, e eu digo justamente a Grécia, porque a democracia foi inventada lá, não dispõe de uma jurisdição constitucional. Hoje eu defendo a seguinte opinião: a jurisdição constitucional é um instrumento sutil, detalhado e refinado da democratização de uma sociedade, desde que ela se comprometa com a tutela dos interesses da minoria.
ConJur — Como efetivar os direitos fundamentais previstos na Constituição sem que o Judiciário sofra acusações de promover o ativismo jurídico?
Häberle — Sob uma perspectiva mundial, percebe-se que os tribunais constitucionais de diversas nações caracterizam-se por períodos de ativismo judicial — como os exemplos do Tribunal Constitucional húngaro depois de 1989 e da Corte da Comunidade Europeia, com sede em Budapeste, nos primeiros 20 anos da União Europeia — e outros espaços de tempo nos quais os tribunais entram em uma fase de jurisprudência mais restritiva. No caso do Brasil, é importante que o Supremo Tribunal Federal desenvolva muitos precedentes para dar eficácia aos direitos fundamentais. Mas há outras áreas nas quais os juízes podem exercitar a virtude da jurisprudência restritiva e deixar a iniciativa ao legislador parlamentar. Por isso foi muito positivo que o STF, ao reconhecer a união estável homoafetiva, tenha decidido deixar espaço também ao legislador ordinário para tratar do assunto. O tribunal constitucional nunca deverá arrogar-se o papel de preceptor da nação. O ideal é que ele consiga cooperar com os outros poderes da República.
ConJur — Hoje, há uma discussão muito forte no Brasil sobre os limites do ativismo jurídico. A tal ponto que, recentemente, foi apresentado um projeto de lei que dá poderes para o Congresso rever atos do STF quando entender que a Corte extrapolou suas atribuições. Como o senhor vê esse confronto entre Judiciário e Legislativo?
Häberle — Primeiramente, gostaria de dizer que, como um hóspede do Brasil, gostaria de me restringir a análises acadêmicas e não me posicionar em relação a questões atuais de política. Mas, abstratamente, posso responder que seria perigoso se o Parlamento interferisse na jurisprudência em constante evolução de uma corte constitucional. Existem movimentos semelhantes a esse na Hungria e na Turquia. Nestes dois países, os membros do Parlamento também estão envidando esforços para reprimir a influência do Judiciário constitucional. Melhor seria se os juízes dos tribunais constitucionais exercitassem a virtude da jurisprudência restritiva em algumas questões, inclusive por razões de prudência política.
ConJur — O Mandado de Injunção, no Brasil, serve exatamente para que o Supremo Tribunal Federal dê eficácia a direitos constitucionais quando o Congresso se omite. O que o senhor acha desse instrumento?
Häberle — É um instrumento inovador, excelente. Percebemos que nós, representantes dos velhos estados constitucionais europeus, temos muito que aprender com os novos estados constitucionais da América Latina. Isso é uma prova da correção da minha tese da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Porque, neste caso, o cidadão torna-se legislador indiretamente mediante sua reclamação ao STF. Fico entusiasmado com essa valorização positiva do cidadão. Com isso, vocês conseguiram dar mais vida ao conceito de sociedade civil.
ConJur — O que o senhor acha do controle prévio de constitucionalidade?
Häberle — O controle prévio de constitucionalidade não existe na Alemanha e existe há algum tempo na França. Na Alemanha, alguns anos depois da criação do Tribunal Constitucional Federal, cogitou-se a possibilidade de se solicitar um parecer, mas a ideia foi abolida em virtude de um conflito político entre o chanceler [Konrad Adenauer] e o primeiro presidente da República Federal da Alemanha [Theodor Heuss]. Na Alemanha, nós temos uma tutela excessivamente aperfeiçoada pelos Tribunais Constitucionais, por isso não necessitamos de uma jurisdição constitucional preventiva. Parece-me possível que em jovens Estados constitucionais o controle constitucional preventivo seja adequado. Isso, porque eles ainda não foram suficientemente educados para se conformarem à Constituição e a respeitarem.
ConJur — Esse fenômeno tem a ver com a ideia que o senhor tem da chamada pedagogia da Constituição?
Häberle — Sim. A pedagogia da Constituição ou pedagogia constitucional evidencia-se, por exemplo, no fato de a Constituição de Guatemala e de a antiga Constituição peruana determinarem que as crianças ainda nas escolas cursem uma disciplina chamada educação para os Direitos Humanos. Há poucos anos, a Espanha desenvolveu e criou o programa de cidadania por intermédio da educação e da cultura, e essa criação espanhola transcorreu com a minha ajuda científica. É importante que um jovem Estado Constitucional como o Brasil, apesar da sua Constituição muito extensa, consiga transmitir os princípios mais importantes aos jovens das escolas e das universidades, e isso em uma linguagem próxima ao horizonte de entendimento do cidadão. Permito-me aqui uma pequena ironia: essa transmissão também deve ser feita considerando a linguagem da mídia e dos jornalistas.
ConJur — A Constituição brasileira é muito longa e tem garantias que dizem respeito diretamente à vida das pessoas. Como conseqüência, as decisões do Supremo Tribunal Federal também acabam afetando a vida de muitas pessoas. É bom para um Estado que sua Constituição seja extensa?
Häberle — Vamos começar com um raciocínio empírico: a história consigna exemplos de Constituições muito lacônicas. Tome como exemplo a Virgina Bill of Rights e a Declaração da Independência dos Estados. A lei fundamental alemã, que é a Constituição da Alemanha, é de 1949. Ela é incomumente lacônica e compreensível ao cidadão comum. Mais de 60 anos depois, foram mais de 55 emendas constitucionais. Elas quase desfiguraram a nossa Constituição, tornando-a ilegível. Costumo mencionar a Constituição da República Federativa do Brasil como exemplo de uma Constituição barroca. Pessoalmente aprecio mais as constituições tributárias, do estilo românico e do estilo gótico.
ConJur — É curioso e vale comentar que, mesmo sendo extensa, a Constituição brasileira já teve mais de 45 emendas.
Häberle — Sim. A dificuldade do constituinte está em formular, na medida do possível, as tais cláusulas pétreas, e deixar os detalhes técnicos aos cuidados do legislador ordinário ou ao Direito Administrativo que regula as relações com o Estado. O constituinte tem o dever de encontrar soluções de meio termo que agradem todos os grupos sociais, como acontece na sociedade multiétnica que é o Brasil. Essa disposição de encontrar o meio termo conduz a uma Constituição mais extensa.
ConJur — O julgador pode ir contra a vontade das maiorias para cumprir a Constituição?
Häberle — O critério da jurisdição constitucional só pode ser o da própria Constituição. O tribunal constitucional pode lembrar o legislador ordinário que a Constituição existe e é um critério que pode declarar nula uma lei ou construir para o legislador ordinário uma tarefa legislativa. Existe ainda o instrumento mais refinado da interpretação em conformidade com a Constituição que protege o legislador parlamentar, que é o do possível. De acordo com esse método, atende-se à lei interpretando-a de um modo compatível com a Constituição. Essa interpretação em conformidade com a Constituição é um método originário da Suíça, onde eu fui professor durante 20 anos.
segunda-feira, 30 de maio de 2011
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