terça-feira, 25 de outubro de 2011
Canotilho
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CONJUR - 23 outubro 2011
Limites do ativismo
“Política pública não pode ser decidida por tribunal”
Por Rogério Barbosa
O Poder Judiciário precisa refletir sobre seu avanço diante das atribuições dos
outros dois Poderes da República. Na implementação de políticas públicas, por
exemplo, a Justiça pode até ter uma participação complementar, mas nunca atuar como
protagonista em ações típicas dos Poderes Legislativo e Executivo. A opinião é de um
dos maiores estudiosos de Direito Constitucional do mundo, o professor da renomada
Universidade de Coimbra José Joaquim Gomes Canotilho — ou apenas J. J. Canotilho,
como gosta de ser chamado.
O jurista, que tem em seu currículo o fato de ser um dos autores da Constituição de
Portugal, é um crítico da ampliação do controle do Poder Judiciário sobre os demais
poderes, principalmente na esfera da efetivação de direitos que dependem de
políticas públicas, o que se convencionou chamar de ativismo judicial: “Pedir ao
Judiciário que exerça alguma função de ordem econômica, cultural ou social é pedir
ao órgão que exerça uma função para a qual não está funcionalmente adequado”.
J. J. Canotilho recebeu a revista Consultor Jurídico para uma breve entrevista em
São Paulo, por onde passou para participar da entrega do Prêmio Mendes Júnior de
Monografias Jurídicas, promovido pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas. Além fazer observações sobre ativismo, ele também fez ressalvas
sobre o mecanismo de Repercussão Geral aplicado pelo Supremo Tribunal Federal no
Brasil.
O professor ainda revelou que há coisas que aproximam bem a Justiça portuguesa da
brasileira. Por exemplo, o fato de processos em Portugal poderem percorrer até cinco
instâncias para, enfim, chegarem a uma conclusão. O jurista ainda falou sobre as
metas do Conselho Nacional de Justiça e considerou questionável a intenção da
presidente Dilma Roussef de flexibilizar patentes. “A flexibilização é muito
perigosa porque pode significar a quebra de patente”, disse. Para o professor, as
empresas têm direito de exploração econômica, por certo período, por ter inventado
um produto. É uma garantia constitucional que não deve ser violada a não ser em
casos de extremo interesse público.
Aos 68 anos, Canotilho é considerado um dos papas do Direito Constitucional da
atualidade, citado com frequência por ministros do Supremo Tribunal Federal. É
doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, professor
visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Macau e autor de obras
clássicas como Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador e Direito
Constitucional e Teoria da Constituição.
Leia a entrevista
ConJur — Recentemente, o senhor participou de um debate em que se discutiu o
ativismo judicial. Qual a sua opinião sobre o assunto?
J. J. Canotilho — Não sou um dos maiores simpatizantes do ativismo judicial. Entendo
que a política é feita por cidadãos que questionam, criticam e apontam problemas. Os
juízes nunca fizeram revoluções. Eles aprofundaram aplicações de princípios,
contribuíram para a estabilidade do Estado de Direito, da ordem democrática, mas
nunca promoveram revoluções. E, portanto, pedir ao Judiciário que exerça alguma
função de ordem econômica, cultural, social, e assim por diante, é pedir ao órgão
que exerça uma função para a qual não está funcionalmente adequado.
ConJur — No Brasil, há uma enxurrada de ações e determinações judiciais para que o
Estado forneça remédios para quem não pode comprá-los. Como o Judiciário deve atuar
quando o Estado não põe em prática as políticas públicas?
J. J. Canotilho — As políticas públicas não podem ser decididas pelos tribunais, mas
pelos órgãos socialmente conformadores da Constituição. Mas é fato que existem
medicamentos raros e certa falta de compreensão para situações especificas de alguns
doentes. Isso põe em causa a defesa do bem da vida. Os tribunais devem ter
legitimação para solucionar um problema desses. É um problema de Justiça e o valor
que está a ser invocado é indiscutível: o bem da vida.
ConJur — O senhor afirma que as políticas públicas não devem ser decididas pelo
Judiciário. Mas, uma vez que passam a representar uma demanda que a Justiça não tem
como deixar de enfrentar, qual a melhor forma de equalizar esta questão?
J. J. Canotilho — O Judiciário precisa enxergar o seu papel nessa questão. Ele pode
ter uma participação, mas tem que complementar, e não ser protagonista. Até porque,
quando determina a entrega de um medicamento a um cidadão, ele não está resolvendo o
problema da saúde. Ele não tem o poder, a incumbência e não é o mais apropriado para
a solução das políticas públicas sociais. Os que são responsáveis são os órgãos com
responsabilidade política dos serviços de saúde, desde o Legislativo ao Executivo.
ConJur — Qual a sua opinião sobre o mecanismo da Repercussão Geral, criada para
filtrar a subida de recursos e para pacificar em todo o Judiciário os
posicionamentos do Supremo Tribunal Federal?
J. J. Canotilho — É uma das perguntas a que não sei responder. Porque, no fundo, o
apelo à Repercussão Geral é, de certo modo, uma urgência de sintonizar as decisões
judiciais — que são muitas — com a República e com os cidadãos. Nessa medida,
entendo que o Supremo Tribunal Federal está levando em conta uma dimensão
interessante. Essa é uma atitude inteligente. Mas uma coisa é convocar a vontade da
Repercussão Geral e outra é avocar os argumentos, que é um conceito indeterminado,
para justificar um caso concreto. Existe então a possibilidade da jurisprudência ser
uma jurisprudência que não aplica o Direito para o caso concreto, mas que repete a
retórica e os textos argumentativos de outras sentenças.
ConJur — Qual é a diferença?
J. J. Canotilho — A diferença é que embora você tenha uma Repercussão Geral, cada
caso possui uma particularidade. Por isso, cada juiz deve julgar o caso concreto. O
que por vezes se tem percebido é que tanto a Repercussão Geral quanto a
disponibilização do processo digitalizado têm contribuído para que juízes apliquem a
decisão, a mesma que o tribunal tomou sobre aquele tema, quando na verdade o correto
é avocar o entendimento para tomar sua própria decisão.
ConJur — O senhor é contra a informatização dos processos?
J. J. Canotilho — Não há razão nenhuma para duvidar da bondade da informatização,
até porque ela oferece ao cidadão acesso a um ato do tribunal e à possibilidade de
saber em que pé está o processo. Eu acho que isso é uma evolução absolutamente
incontornável, então não podemos criticá-la. Até porque, relativamente aos juízes
que aparecem agora, mais jovens, nenhum pode deixar de saber trabalhar com os
instrumentos da informática, com os computadores.
ConJur — Mas, ao falar da Repercussão Geral, o senhor deu a entender que existe
algum problema com relação à digitalização do processo...
J. J. Canotilho — Sim. É a questão de os juízes pensarem em copiar uns aos outros.
Ou seja: “Como é jurisprudência constante... Como já decidimos...”. Com a ausência
do papel, agora isso é muito mais fácil. E pode haver alguma uniformização da
própria estrutura, da própria retórica, o que não é mal, desde que aquilo sirva ao
caso concreto que está a ser discutido. Mas isso também parece incontornável. Isso
facilita também que os juízes transcrevam um esquema básico e, afinal de contas, não
é só um parâmetro, mas é um esquema que eles utilizam todos da mesma maneira. Ou
seja, garante-se um nível de uniformização, mas perde-se alguma coisa desta dimensão
de que cada processo é um processo, de que cada caso é um caso. E há esta
possibilidade da jurisprudência ser uma jurisprudência que não diz o Direito para o
caso concreto, mas que repete a retórica e os textos argumentativos de outras
sentenças.
ConJur — Mas isso também ocorre em virtude do número grande de processos, não? A
propósito, qual a opinião do senhor sobre as metas impostas pelo CNJ?
J. J. Canotilho — Há mais ou menos uns dois anos, o governo português tinha mandado
fazer um estudo sobre o tempo médio de trabalho necessário para proferir uma
decisão. Os magistrados logo se revoltaram dizendo que era intrusão do Executivo no
Judiciário, porque não há possibilidade de determinar um tempo médio na produção de
um juiz. Essa cobrança é natural, afinal, nos tempos de hoje, tudo requer agilidade
e eficiência. Mas basta entrar em qualquer tribunal para ver processos com milhares
de partes, processos com monstruosa complexidade, que levam meses e até anos para
serem decididos. Por mais que se criem soluções como a informatização, ainda é o ser
humano que decide. Por exemplo, se determina que o juiz julgue 500 casos por ano.
Ele julga 300. Depois se pede 400. E ele julga 300. E quando se pede 200? Ele julga
300. Portanto, as metas nos permitem dizer que é humanamente impossível decidir por
ano mais do que tantos processos.
ConJur — Aqui ainda é forte a máxima do “ganha, mas não leva”, porque o pleito da
causa e a execução se dão em processos diferentes. Isso também ocorre em Portugal?
J. J. Canotilho — Em Portugal também funciona assim. Muito dos processos acabaram
por ser processos puramente declaratórios. Muitas partes não abdicam de todas as
dimensões recursais e vão até o Supremo. Em Portugal, há o risco de termos até cinco
instâncias. São três até ao Supremo Tribunal de Justiça, quatro com a Corte
Constitucional e cinco ao Tribunal Europeu. Muitas empresas arrastam os processos
sem razão de ser. Há processos demasiado formalistas ou garantistas que impedem uma
solução dos conflitos.
ConJur — Parece que não existe Defensoria Pública em Portugal. Como isso funciona?
J. J. Canotilho — Não existe a instituição Defensoria Pública, mas há defensores
pagos pelo Ministério da Justiça. Portanto, de uma lista de advogados, indicados
pela Ordem dos Advogados, há defensor oficioso que é pago pelo Estado. Isso traz
alguns problemas. Muitas vezes, são jovens advogados que não têm experiência, o
governo atrasa o pagamento, mas não sei qual é o melhor modelo, até porque não sei
como seria se tivéssemos a Defensoria. No Brasil tem, mas não conheço seu trabalho.
ConJur — O senhor falou sobre advogados com pouca experiência, mas como o avalia a
nova geração da advocacia?
J. J. Canotilho — Existe uma questão que precisa ser observada no Brasil, que é a
qualidade das universidades, em especial das privadas. A quantidade de universidades
que publicam livros, que realmente acrescentam para o mundo do conhecimento é muito
pequena. As universidades não podem ser escolas primárias. Vejo muita honestidade e
boa vontade na iniciativa do Brasil em democratizar o acesso ao ensino superior, mas
isso precisa vir acompanhado de qualidade.
ConJur — Aqui no Brasil se critica o baixo índice de aprovação no Exame da OAB. O
senhor acredita que isso é resultado do número de universidades de má qualidade?
J. J. Canotilho — Não apenas. Qual é o brasileiro que pode se dedicar exclusivamente
aos estudos? Poucos. Isso influencia também. Não que eu defenda que as pessoas devam
se dedicar integralmente aos estudos, mas é preciso reservar tempo considerável. O
mesmo se aplica aos professores. As universidades públicas pagam quase nada para que
eles façam orientação de mestrado, doutorado, por isso muitos saem da aula e vão
direto para o tribunal advogar. Eles não têm tempo para preparar uma boa aula. Os
alunos estão cansados. Não há tempo para o estudo, não há tempo para pesquisa.
Trabalhos acadêmicos são grandes plágios.
ConJur — Por falar em plágio, a presidente Dilma Roussef tem falado em
flexibilização de patentes. Qual a sua opinião?
J. J. Canotilho — A flexibilização é muito perigosa porque pode significar a quebra
de patente. As empresas têm direito de exploração econômica, por certo período, por
ter inventado um produto. É uma garantia constitucional que não deve ser violada a
não ser em casos de extremo interesse público, como no caso dos genéricos, e não nos
moldes que ocorre no Brasil.
ConJur — Por quê? O que há de errado na política brasileira de medicamentos
genéricos?
J. J. Canotilho — No meu ponto de vista esta é uma questão que o Brasil deveria ter
superado. O que é um genérico? Um medicamento com o mesmo princípio ativo que um de
mercado. Ou seja, de um que foi desenvolvido pela indústria, com base em anos de
pesquisa, muito dinheiro investido e que está protegido por lei por 20 anos. Como um
medicamento genérico pode confeccionar uma bula dizendo que em 2% dos casos pode
ocorrer tal reação adversa? Ele não fez nenhum teste, como pode afirmar? O genérico
é um grande plágio.
Rogério Barbosa é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2011
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