O Supremo ainda é muito obscuro
23/06/2011 - 13:10 - Atualizado em 24/06/2011 - 19:46
Conrado Hubner Mendes : “O Supremo ainda é muito obscuro”
Especializado em questões constitucionais, o jurista questiona os métodos do STF
Luiz Maklouf Carvalho
Aos 14 anos, o paulistano Conrado Hubner Mendes queria ser tenista. Jogou até com Guga, antes da fama, e não perdeu feio. Mas acabou o entusiasmo. No 3º ano da faculdade de Direito, foi aluno do professor Cezar Peluso, hoje presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). O incidente acabou contribuindo para a opção profissional de Mendes. Por mais que sua aparência continue a ser mais de um tenista, ele é, aos 34 anos, um jurista, e dos mais respeitados entre os da nova geração. Ao se especializar em questões constitucionais e no estudo das supremas cortes, tornou-se referência por um raro e consistente viés de crítica ao STF. Mendes acaba de lançar seu segundo livro, em que volta a discutir o papel do Supremo na democracia brasileira.
ENTREVISTA - CONRADO HUBNER MENDES
QUEM É
Jurista, formado em Direito pela PUC-SP, com um mestrado e doutorado em ciência política pela USP e outro doutorado em filosofia do Direito na Universidade de Edimburgo, Escócia
O QUE PUBLICOU
Controle de constitucionalidade e democracia, 2008, é referência pelo raro e consistente viés de crítica ao STF. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação, recém-lançado, analisa o papel de uma corte constitucional na democracia
ÉPOCA – O presidente do Supremo, Cezar Peluso, diz que as instâncias decisórias da Justiça devem cair de quatro para duas, porque isso vai lhe dar mais agilidade. O ministro Marco Aurélio Mello manifestou-se contra, por causa de um suposto prejuízo ao direito de defesa. De que lado o senhor está?
Conrado Hubner Mendes – O sistema atual, com quatro instâncias, é injustificável. Propostas de reforma, infelizmente, enfrentam muita resistência. É sintomático que a maioria dos críticos recentes ao projeto seja de advogados que militam nos tribunais. O argumento é basicamente um só: a diminuição dos recursos restringe o direito de defesa, ou, no campo penal, viola a presunção de inocência. Parecem sugerir que, maximizando os recursos, minimizamos a possibilidade do erro. Como se juízes de tribunais superiores fossem menos falíveis. O fetiche do direito de defesa é poderoso e perverso. E contribui para a irracionalidade do sistema processual.
ÉPOCA – Qual é o problema com o sistema de quatro instâncias?
Mendes – A mensagem desse sistema é que o jogo só passa a valer quando chega a Brasília. A instância inferior fica reduzida a mero obstáculo que prolonga a disputa. Precisamos pensar com mais atenção sobre o significado do direito de defesa. A máxima do “quanto mais recursos, melhor defesa”, implícita em tantas críticas, não pode continuar a prevalecer. Não se trata de um debate de técnica processual, que tende a ser monopolizado por processualistas, mas de um debate institucional mais amplo. Desse diálogo deveriam participar muitas outras vozes.
ÉPOCA – O Supremo é criticado por causa de certo ativismo judicial – no sentido de usurpar as atribuições do Congresso.
Mendes – Ativismo judicial é uma expressão complicada e escorregadia. Não raro, é usada retoricamente para criticar aquelas decisões das quais não gostamos. Se queremos ter controle judicial de constitucionalidade, porém, temos de estar preparados para aceitar atos intrusivos do Tribunal sobre o legislador e sermos capazes de discutir, com mais proveito, a consistência e coerência desses atos.
ÉPOCA – Por quê?
Mendes – Negar o caráter legislativo à atividade do Supremo é de uma inocência surpreendente, ainda mais no contexto da Constituição de 1988, cheia de promessas de mudança social. Os próprios ministros já disseram isso muitas vezes e estão certos. Não é por aí que devemos criticar aquelas decisões do Supremo das quais discordamos juridicamente. A separação de poderes não comporta funções e papéis tão estáticos. Os poderes negociam informalmente seus espaços ao longo do tempo, e o Supremo não tem, ao contrário do que se diz, a última palavra. O Supremo tem, é claro, a última palavra para resolver o caso judicial “x” ou “y”. Mas os mesmos assuntos e problemas podem ser reavivados pelo sistema político, e as decisões anteriores do Supremo podem ser desafiadas. Isso faz parte do jogo democrático.
ÉPOCA – Por que a Justiça brasileira é lenta e, salvo exceções, não funciona contra os poderosos e os políticos?
Mendes – Não diria que não funciona, mas de fato continua lenta e discriminatória. A explicação velha, mas ainda pertinente, é de caráter processual: a existência de um sistema tão intrincado de recursos estimula que advogados apelem para todas as vias possíveis. Nem falo só de má-fé ou chicana advocatícia, mas do uso natural dos atalhos que o sistema oferece.
Preconceitos socioeconômicos, raciais e de gênero levam a decisões judiciais de muitos pesos e medidas. Levam à injustiça
ÉPOCA – Quem pode mais chora menos.
Mendes – Quem não tem dinheiro para sustentar uma batalha judicial tão longa, cara e complicada sai prejudicado. Mas não devíamos reduzir o diagnóstico das causas da lentidão e da ineficácia só às leis que disciplinam o processo judicial.
ÉPOCA – Quais são as outras explicações?
Mendes – Há fatores culturais que determinam como o processo funciona na prática. E aí, conforme pesquisas já demonstraram, o problema é mais profundo: preconceitos socioeconômicos, raciais e de gênero levam a decisões judiciais de muitos pesos e muitas medidas. Em outras palavras, levam à injustiça. Identificar e atacar isso é uma missão educativa muito mais trabalhosa e demorada que a produção de novas leis.
ÉPOCA – Como explicar que o Supremo tenha 60 mil processos por ano para julgar?
Mendes – Há muitas causas: tantas competências, tantos recursos, falta de filtros eficazes para rejeitar certos recursos, ou falta de vontade ou coragem no uso desses filtros. O instrumento mais poderoso para reduzir esse número é o instituto da repercussão geral, recém-criado.
ÉPOCA – Como funciona esse instituto?
Mendes – Ele autoriza o Tribunal, com base em critérios de relevância do caso, a selecionar os recursos que serão analisados. O número de casos vem caindo a partir disso, apesar de continuar longe do razoável. As grandes cortes constitucionais do mundo não julgam mais que duas centenas de casos por ano. Não deveríamos ignorar essas experiências de cortes minimalistas, que decidem pouco, mas, em geral, com maior sofisticação e objetividade argumentativa.
ÉPOCA – É boa a forma de escolha dos ministros do Supremo pelo presidente da República, com sabatina do Senado?
Mendes – Não há fórmula perfeita para escolher ministros de uma suprema corte ou de uma corte constitucional. Por mais que se possa dizer que há defeitos no sistema brasileiro atual, como a quase irrelevância que sempre teve a sabatina, a experiência recente mostra, pelo menos, que tal sistema não restringe a independência dos escolhidos. Claro que poderíamos pensar num sistema que gerasse maior diversidade e representatividade simbólica. Experiências estrangeiras adotaram alguns modelos distintos, e poderíamos pensar num sistema que atendesse às peculiaridades políticas brasileiras. Porém, não acho que esse seja um problema urgente e prioritário.
ÉPOCA – Os ministros deveriam ter mandato fixo? Ou é melhor do jeito que está?
Mendes – Mandato fixo traria algumas vantagens. Geraria maior alternância na composição da corte, estabilizaria uma periodicidade na troca de ministros, evitaria que um presidente, por obra do acaso, nomeie mais ministros que outro. Mas, dentro dos desafios de aperfeiçoamento do Supremo, é um problema menor.
Não vejo nada de tão valioso na publicidade de uma sessão em que ministros basicamente leem os votos pré-fabricados em gabinetes
ÉPOCA – Quais são os outros problemas e entraves que o senhor enxerga no Supremo?
Mendes – Há outras questões menos visíveis que merecem ser mencionadas. Dizem respeito à forma de o Supremo proceder, a seu estilo decisório, seus usos e costumes. Eu começaria com a agenda. Ninguém sabe bem quais são os critérios que orientam o presidente do Tribunal a colocar certos casos na pauta de julgamento e outros não. Claro que alguma flexibilidade é conveniente, mas nem sempre é fácil entender por que certos casos levam poucos anos e outros, sem nenhuma diferença processual óbvia, levam dez ou 15 anos. Não vejo nada de tão valioso na publicidade de uma sessão em que ministros basicamente leem os votos pré-fabricados em gabinetes
ÉPOCA – Em sua avaliação, o pedido de vista é outro problema?
Mendes – Sim. A absoluta liberdade dada a todo ministro para interromper uma sessão de julgamento e, sem grandes explicações, pedir vista para pensar melhor sobre o caso é um desrespeito ao espírito de colegialidade que deveria existir entre eles. E, pior, há alguns casos que ficam engavetados por anos no gabinete de um ministro e outros que retornam a julgamento após poucos dias ou semanas. Não conheço uma justificativa convincente para essa disparidade.
ÉPOCA – Esse descontrole gera desconfiança quanto à seriedade desses pedidos, não?
Mendes – É uma margem de manobra que pode atrasar quase que indefinidamente o julgamento de casos delicados. É verdade que pode até ser conveniente do ponto de vista estratégico, mas precisa ser mais bem vigiada pela sociedade.
ÉPOCA – O que o senhor acha da sustentação oral que os advogados fazem durante os julgamentos, nas turmas ou no plenário, quando os ministros já estão com os votos prontos, ou praticamente prontos?
Mendes – A sessão de julgamento, como um todo, é extremamente rígida e personalista. Divide-se em dois grandes momentos: primeiro, as partes do caso fazem a “sustentação oral” e, imediatamente depois, os ministros leem seus votos e decidem. Durante todo esse ritual, há pouquíssima interação ou diálogo, seja dos advogados com os ministros, seja dos ministros entre si. E, como os votos, quase sempre, já estão prontos antes mesmo da sustentação oral, os argumentos trazidos pelos advogados não contribuem para nada. É mero protocolo. Em suma, esse evento é outra oportunidade desperdiçada para uma troca mais espontânea de argumentos.
ÉPOCA – Peluso quer que a corte faça reuniões prévias fechadas antes das decisões plenárias. O que o senhor acha?
Mendes – Há muita desconfiança contra essa ideia, mas baseada numa compreensão equivocada do ideal de transparência. Brandeis, um juiz famoso da Suprema Corte americana, cunhou uma frase que se tornou mote dos movimentos de reivindicação por transparência. Ele dizia algo como “a luz do sol é o melhor desinfetante”. A transparência é uma conquista democrática, pré-requisito para o exercício legítimo do poder. Isso todos sabem e concordam. Porém, a transparência está repleta de armadilhas e precisa ser bem compreendida. O sol nem sempre nos faz ver melhor. Ao contrário, o excesso de luz pode cegar. Por trás desse manto da transparência, há, no Supremo, uma corte ainda extremamente obscura.
ÉPOCA – Mesmo com a transmissão ao vivo e em cores das sessões plenárias?
Mendes – O Supremo não é transparente para quem acha que transparência é algo um pouco mais exigente do que oferecer decisões na internet e transmitir julgamentos pela TV. Não vejo nada de tão valioso na publicidade de uma sessão em que ministros basicamente leem os votos pré-fabricados em gabinetes. Se quisermos que juízes deliberem com a franqueza e a modéstia intelectual que isso exige, temos de deixá-los reunir-se a portas fechadas.
ÉPOCA – Mas a portas fechadas não seria uma alternativa perigosa?
Mendes – Pensar que a portas fechadas deixa os ministros livres para arbitrariedades é um erro. O que deve estar sujeito ao escrutínio público é a qualidade da decisão escrita que eles entregam ao final da deliberação, não a deliberação em si. Se o ministro estiver mal-intencionado, não serão as portas abertas que evitarão arbitrariedades. O arranjo atual, de portas abertas, produz consequências piores do que as outras opções. Tente ler uma dessas decisões com pluralidade de votos e extrair dela um mínimo denominador comum, uma regra que oriente casos futuros. Raramente vai encontrar.
domingo, 3 de julho de 2011
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