sexta-feira, 29 de julho de 2011

Veto a filme

Veto a filme revela conflito jurídico

Juristas não veem censura a "A Serbian Film", impedido de ser exibido, mas defendem direito à liberdade

Ao expor personagens, cineasta pode ferir direito constitucional que garante a defesa da integridade humana

ANA PAULA SOUSA
DE SÃO PAULO

A liminar judicial que impediu, no último sábado, a exibição de "A Serbian Film -- Terror sem Limites", no Rio, fez com que uma palavra retornasse, veemente, ao vocabulário de artistas e produtores culturais: censura.
O filme do diretor sérvio Srdjan Spasojevic, que traz uma sugestão do estupro de recém-nascido e incesto envolvendo criança, foi suspenso de um festival de terror por ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Apesar de vir a público embaçada pela névoa política --a ação foi movida por integrantes do DEM-- e pelo trauma deixado pela ditadura, o que está por trás do caso, tecnicamente, é um conflito entre dois princípios jurídicos. Se a Constituição garante, de um lado, a liberdade de expressão, ela também garante, de outro, a chamada preservação da vida e da integridade da pessoa humana.
"Eu não posso ser proibido de me expressar, mas posso ser responsabilizado caso viole outras garantias constitucionais", explica o jurista Walter Ceneviva, articulista da Folha. "São dois lados dos mesmo fio da navalha. E é tão sutil que, na dúvida, devemos preservar a liberdade."
Seguindo uma linha semelhante de pensamento, Virgílio Afonso da Silva, professor da USP, observa que, embora as liberdades artística e de expressão não sejam absolutas, "em um Estado democrático existe uma fortíssima presunção a seu favor".
"Isso significa que só em situações muito excepcionais essas liberdades poderiam ser restringidas", diz Silva. A pergunta a que, por ora, nenhum dos envolvidos no caso conseguiu responder é: que critérios embasaram a restrição da liberdade?

PROTEÇÃO OU ARROUBO?
Sabe-se apenas que, servindo de contrapeso à liberdade de expressão, na balança jurídica que tirou o filme da tela, está o Estatuto da Criança e do Adolescente. Em seu artigo 71, o estatuto trata de informação, cultura e lazer e diz que as obras devem respeitar a criança como pessoa em processo de desenvolvimento.
O estabelecimento desses limites fica a cargo do Ministério da Justiça, que faz classificação indicativa de filmes e programas de TV. "A ideia é proteger as crianças. Não se trata de censurar, mas de verificar a adequação de uma peça a determinado veículo ou horário", explica o procurador Paulo Afonso Garrido de Paula, um dos criadores do ECA.
Para explicar, legalmente, o veto a "A Serbian Film", o procurador cita, também o direito de proteção de uma comunidade que, genericamente, se sinta ofendida. "Um filme que fizesse apologia da pedofilia poderia, em tese, ter a veiculação impedida. Mas aí me pergunto: e uma peça homofóbica, poderia ser proibida?", provoca.
"Sem ver o filme, é difícil saber se houve uma tentativa real de proteção da criança ou apenas um arroubo de poder", pontua o procurador.
O que os juristas ouvidos pela Folha afirmaram é que, neste caso, mesmo não descartado o erro, a palavra censura é inadequada. "Quando a Justiça proíbe a exibição de um quadro na TV, que induz o público ao engano ou à degradação, por exemplo, não é censura, mas sim tutela", conclui o advogado Rodrigo Salinas, especializado em cultura.

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