quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
Denninger e Grimm e os impasses da teoria constitucional
sábado, 15 de dezembro de 2007
O olhar dos advogados a respeito da judicialização política
sexta-feira, 14 de dezembro de 2007
A insegurança jurídica e o STJ
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
As diferenças da Reforma do Judiciário na França
segunda-feira, 10 de dezembro de 2007
O Republicanismo na concepção de Zagrebelsky
Zagrebelsky e Neoconstitucionalismo
1. Importância do direito comparado
Na contemporaneidade podemos torna-se notória uma propensão ultra-nacional, quiçá universal das funções nacionais da justiça constitucional. Apesar do Estado Constitucional não coincidir em toda a parte, no entanto, há muita convergência prática no julgamento em matéria constitucional entre os países.
Zagrebelsky ressalta que nos últimos tempos o intercâmbio de experiências tem obtido foco justamente no direito constitucional devido à citação e utilização, por parte das cortes, de doutrina e jurisprudência estrangeiras[1].
São dois os extremos desta discussão: por um lado temos o artigo 39 da Constituição da República da África do Sul de 1996, segundo o qual, ao interpretar o rol de direitos , os tribunais “devem levar em consideração o direito internacional e podem levar em consideração o direito estrangeiro”. Em contrapartida, temos a idéia de quem defende a manutenção das características originais da Constituição sob pena desta se tornar parte de um constitucionalismo genérico sem fronteiras e sem características.
O significado da contestação de um nascente “cosmopolitismo judicial” está bem representado por um projeto de lei apresentado em 2004 nos EUA, intitulado Constitution Restoration Act. Tal projeto inibe os juizes de interpretarem a Constituição levando em consideração documentos distintos dos nacionais incluindo as decisões de Cortes Constitucionais ou Supremas de outros Estados e os tribunais internacionais de Direitos Humanos. Tal medida é defendida para a suposta manutenção da identidade da constituição nacional.
Na Europa tal fato não ocorre, pois, a comparação é considerada o quinto método de interpretação constitucional depois dos quatro de Savigny (métodos gramatical, histórico, sistemático e teleológico).
A doutrina do direito natural alega que existem princípios que devem necessariamente informar o direito positivo e tais são universais, pois devem ser encontrados tanto no próprio ordenamento quanto nos demais ordenamentos. O consenso seria, portanto, uma forma de legitimação e fundamentação de cada uma das decisões judiciais.
Exemplo de aspiração da universalidade são as normas que tipificam a dignidade e igualdade de todos os seres humanos e os direitos fundamentais. Sua interpretação não é a interpretação de um contrato, de uma decisão administrativa, ou de uma lei, tal interpretação constitucional é um ato de adesão ou de ruptura a tradições histórico-culturais compreensivas da qual as Constituições particulares fazem parte.
A relevância para a jurisprudência nacional da jurisprudência estrangeira ou supra-nacional é que estas são um plano de fundo que agregam um significado preciso do momento histórico pelo qual as Constituições nacionais estão passando.
O direito interno deve ser sempre priorizado em detrimento do direito estrangeiro mas como afirma Zagrebelsky, é como se recorrêssemos a um “amigo com grande experiência” que nos faz pensar melhor, que amplia as perspectivas e enriquece as argumentações. Ou seja, “o direito comparado me serve como um espelho: me permite observar-me e compreender-me melhor”[2].
Não há o menor prejuízo da soberania nacional, pois os juízos de homogeneidade e de congruência dos textos e dos contextos continuam sendo das Cortes nacionais. Portanto, as Cortes têm raízes que as assentam em condições político-constitucionais nacionais, no entanto, têm a cabeça sempre direcionada para princípios de alcance universal. Se manter na clausura nacional significa de acordo com o autor “ficarem predispostas a políticas constitucionais e de direitos humanos voltadas apenas aos interesse nacionais”[3].
A comunicação entre jurisprudência pressupõe a existência, na interpretação, de uma margem de elasticidade, ou seja, de discricionariedade das cortes. A denominada constituição viva deve ser sensível as exigências constitucionais que mudam com o tempo.
A discricionariedade é um dado irrefutável. Zagrebelsky afirma que a melhor prova está nos projetos de reforma que tentam redefinir o papel das Cortes baseando-se na seguinte lógica: somos contra a discricionariedade, mas, como não a podemos eliminar, então ao menos que esta se oriente segundo as expectativas políticas, modificando com este objetivo os equilíbrios internos. Desse modo, se reforça o equívoco, golpeando a justiça constitucional em seu ponto essencial, a autonomia da política.
Tal alternativa não é uma questão entre constituição fixa e cristalizada e constituição viva e sim entre corte autônomas e cortes alinhadas com a política[4].
Uma característica não acidental da constituição é sua natureza principiológica, isto porque, os princípios são normas naturalmente abertas aos acontecimentos futuros. De acordo com Dworkin os princípios contêm conceitos (humanidade, dignidade, igualdade, liberdade e etc...) que vivem através de suas concepções mutantes com o tempo[5].
A Constituição, para o autor, não muda como uma lei qualquer nem prescreve em data determinada. Entre a geração constituinte e as gerações que a sucedem se institue uma relação como a que existe entre pais e seus filhos sucessores. Cada geração de herdeiros tenta melhorar e perpetuar a Constituição, e não deixar ao vento o legado recebido[6]. A lei da boa vida das constituições é seu desenrolar na continuidade. O instrumento normal para isto e a jurisprudência, o excepcional é a reforma.
De acordo com juiz Robert Jackson da U.S. Supreme Court no famoso caso do compulsory flag salute, West Virginia Board of Education versur Barnette, de 1943, a função da constituição é:
“O autêntico propósito de uma constituição é de subtrair certas matérias das vicissitudes das controvérsias políticas, colocá-las fora do alcance das maiorias e funcionários, sancioná-las como princípios legais aplicáveis por parte dos tribunais. O direito de cada um a vida, a liberdade, a propriedade, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de culto e de reunião e os demais direitos fundamentais não podem ser submetidos ao voto; não dependem do êxito de alguma votação”[7].
A legislação é função sobre matéria que se vota enquanto que a justiça constitucional é função sobre matéria que não se vota, porque é res publica. A função da Corte Constitucional é inerente a forma republicana de Estado e não à democracia, daí tal distinção.
Portanto, nossos princípios constitucionais têm alcance universal e sua violação produz acima de tudo um julgamento moral em qualquer lugar da terra que aconteça. Para Zagrebelsky se não é uma forma institucional supranacional cosmopolita que está por vir ao menos existem contextos deliberativos comunicantes. A interação sempre levará a uma convergência de resultados.
Sendo assim, a abertura das jurisprudência a enlaces recíprocos não é uma moda nem uma pretensão de professores é uma exigência radicada na vocação contemporânea da justiça constitucional. É parte do processo de muitas facetas da “universalização do direito”, um fenômeno característico de nosso tempo jurídico[8].
[1] Zagrebelsky, Gustavo. Jueces Constitucionales in Teoria del neoconstitucionalismo (Edición de Miguel Carbonell). Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 92.
[2] Op. Cit., p. 94-95.
[3] Op. Cit., p. 95.
[4] Op. Cit., p. 97.
[5] Op. Cit., p. 98.
[6] Op. Cit., p. 99.
[7] Op. Cit., p. 101.
[8] Op. Cit., p. 103.
terça-feira, 4 de dezembro de 2007
Constituição: ordem marco ou ordem fundamental?
Um dos pontos centrais da teoria do direito constitucional – e da própria crise da constituição neste início de século – consiste na concepção de constituição que deve ser adotada pela doutrina e tribunais. Em outras palavras, a questão é definir se a constituição deve ser vista como uma ordem fundamental ou ordem marco.
A constituição como ordem jurídica fundamental é uma idéia cara aos juristas. Kägi (A constituição como ordenamento fundamental..., 1945) defendia que a constituição deveria ter caráter normativo e duradouro, rechaçando o seu contínuo “câmbio”. Para Kägi, “como ordenamento normativo legal, a constituição é o fundamento de toda a ordem jurídica estatal”, e sua estabilidade está relacionada com uma ordem de valores fundamentais da sociedade (“a norma estável é a expressão de um valor fundamental duradouro”). Na contínua tensão entre política e constituição, esta última deveria prevalecer. Kägi exerce influência sobre vários autores, entre os quais Garcia de Enterria (A constituição como norma..., 1981), para quem a constituição teria não somente uma “superlegalidade formal”, mas também uma “superlegalidade material”. Muito divulgada entre nós foi a concepção de constituição dirigente do “primeiro” Canotilho, que manteve seus seguidores mesmo após a revisão da tese pelo constitucionalista português. Eros Grau, em 2002, assim escreveu: “a Constituição do Brasil não é um mero 'instrumento de governo', enunciador de competências e regulador de processos, mas, além disso, enuncia diretrizes, fins e programas a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Não compreende tão-somente um 'estatuto jurídico do político', mas sim um plano global normativo da sociedade e, por isso mesmo, do Estado brasileiro”(Canotilho e a constituição dirigente, 2003).
Não obstante, teóricos como Bockenförde e Forsthoff defendem um maior espaço para o legislador e para o administrador na ordem jurídica. Na obra escrita durante a II Guerra Mundial (Tratado de direito administrativo), Forsthoff vê a constituição como algo, por sua natureza, permanente e estático, enquanto a administração significa atividade, movimento e câmbio. Isto seria explicado, segundo o autor alemão, pelo fato de “a matéria de que é feita a administração ser muito mais dúctil do que a da constituição”. E, mais tarde, ao comentar o estado social na Lei Fundamental, Forsthoff coloca que o estado social e estado de direito são diferentes e, em determinadas circunstâncias, antagônicos. Preocupado com a expansão da constituição sobre matérias que considerava próprias da administração e da legislação, Forsthoff afirma que “uma constituição não é uma lei social; ela se dirige à coletividade”, sendo “função do legislador concretizar a norma constitucional de tal modo que a sua execução seja possível com a aplicação mesma da lei assim elaborada”. Forsthoff critica a concepção da constituição como um “ovo jurídico originário”, do qual tudo surge, desde o Código Penal até a Lei sobre fabricação de termômetros. Semelhante crítica é feita por Bockenförde (Origem e câmbio do estado de direito, 1991), para quem a liberdade e a autonomia individuais estariam submetidas ao domínio daqueles que exercem o monopólio da interpretação das normas constitucionais, caso a constituição fosse considerada uma ordem fundamental de valores vinculantes de toda a ordem jurídica. Como questiona Bockenförde, “não se abriria então a porta para um totalitarismo constitucional”?
Embora sejam válidas as preocupações de Bockenförde, o fato é que as constituições pós-1945, e especialmente a Constituição brasileira contêm um amplo leque de disposições a respeito da administração e da regulamentação da vida pública e privada, invadindo espaços classicamente pertencentes ao legislador e ao administrador, bem como atribuindo extensas competências ao judiciário, as quais vêm sendo gradativamente expandidas nas últimas reformas constitucionais. Como acentua Zagrebelsky (Il diritto mite..., 1992), o novo constitucionalismo surgido no pós-guerra tornou necessária a concordância da antiga “face” do Direito – as regras jurídicas colocadas à disposição do legislador – com a outra “face” – a dos princípios contidos na Constituição. Com isto, alterou-se o papel da legislação e da jurisdição na determinação do Direito, deixando de haver entre ambas uma relação de hierarquia. O Estado-legislador, que durante um século foi considerado, na tradição européia, o depositário exclusivo de todo o poder de determinação do Direito, viu seu papel se redimensionar de “senhor do Direito” para apenas “senhor da Lei”. Também de acordo com Luis Pietro Sanchís (Neoconstitucionalismo y ponderación judicial, 2000), a idéia de princípios e o método de ponderação que aparecem indissociavelmente unidos “representam um risco para a democracia e para a supremacia do legislador, e, com isso, para a regra da maioria que é o fundamento da democracia”. Este, porém, segundo o próprio Sanchís, é um “risco inevitável” quando se quer manter uma versão “forte” de constitucionalismo, onde a própria Constituição estabelece diretamente alguns direitos e não simplesmente define “a regra do jogo”.
Mas é importante ressaltar que, longe de atribuir um caráter absoluto à constituição, Zagrebelsky, prega a coexistência de valores e princípios, sobre os quais a constituição deve se orientar para se manter compatível com a base material pluralística que lhe dá fundamento. Na “mitezza” constitucional, Zagrebelsky defende a coexistência do jurídico e do político na constituição, o que não deixa de ser uma idéia de ordem marco. Veja-se que o próprio Zagreblesky afirma que “à Lei deve se reconhecer um valor em si mesma”, com independência de seus conteúdos e de seus vínculos de derivação a partir dos preceitos constitucionais. O reconhecimento da legislação como função originária, para Zagrebelsky, depende necessariamente que a Constituição não seja concebida como um sistema fechado, mas sim como um contexto aberto de elementos cuja concretização, dentro de certos limites, seja deixada ao legislador.
Na mesma linha de Zagrebelsky, Alexy (Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales, 2002) defende um modelo intermediário entre a ordem fundamental de Kägi e a ordem marco (de cunho liberal) de Bockenförde e Forsthoff. Para Alexy, a disjuntiva entre Estado jurisdicional e Estado de legislação tem paralelo com duas diferentes concepções de Constituição. A Constituição pode ser vista como uma ordem fundamental, se considerarmos nela incluídos todos os princípios jurídicos e possibilidades de configuração da ordem jurídica. Sob esta ótica, segundo Alexy, a Constituição seria equivalente ao “ovo jurídico originário” de Forsthoff, e o legislador estaria limitado a somente declarar – sob o controle do judiciário – o que já fora decidido pela Constituição. Esta concepção de Constituição certamente não seria compatível com o princípio democrático e o princípio da divisão dos poderes. Mas a Constituição também pode ser vista como uma ordem marco, em que existe um espaço no qual o legislador não está obrigado a agir nem proibido de agir; um espaço em que o legislador tem permissão para atuar ou para se omitir, ou seja, um espaço de discricionariedade. A metáfora do marco, conforme Alexy, pode ser precisada do seguinte modo: “o marco é o que está ordenado e proibido. O que se confia à discricionariedade do Legislador, ou seja, o que não está ordenado ou proibido, é o que se encontra no interior do marco”. A Constituição como ordem marco preserva margens de ação para o legislador que podem ser de dois tipos: estrutural e epistêmica. O que as normas da Constituição não ordenam nem proíbem se enquadra dentro da margem de ação estrutural do legislador, que, por sua vez, pode ser de três tipos: a margem para fixação de fins, a margem para a eleição de meios e a margem para a ponderação. Alexy também chama a atenção para a existência de margens epistêmicas, que aparecem “quando são incertos os conhecimentos acerca do que está ordenado, proibido ou confiado à discricionariedade do Legislador pelos direitos fundamentais”. A causa dessa incerteza pode residir tanto no conhecimento impreciso sobre as premissas empíricas quanto sobre as premissas normativas.
Alexy, enfim, propõe a compatibilização das idéias de ordem fundamental e ordem marco, distinguindo duas idéias de ordem fundamental: quantitativa e qualitativa. Na concepção de ordem fundamental quantitativa, a constituição não estabelece posições discricionárias, ou seja, para tudo prevê um mandado ou uma proibição. Já na concepção qualitativa de ordem fundamental, a constituição procura resolver os problemas fundamentais da sociedade que podem – e devem – ser solucionadas pela constituição, mas deixa muitas outras perguntas a serem respondidas no debate político. Esta última concepção, segundo Alexy, é compatível com a idéia de ordem marco.
Essa também é a leitura do último Canotilho (Direito constitucional..., 2001), que busca harmonizar a idéia da constituição como fundamento do ordenamento jurídico (Kägi) com uma leitura mais pluralística, caracterizando a constituição como ordem-quadro: “para ser uma ordem aberta a constituição terá de ser também uma ordem-quadro, uma ordem fundamental e não um código constitucional exaustivamente regulador”. Chegamos a semelhante conclusão ao analisar a revisão judicial das escolhas orçamentárias.
Resta então questionar como o nosso Supremo Tribunal Federal vê a constituição: uma ordem fundamental ou uma ordem marco? Esta pergunta merece certamente um post específico em nosso blog, mas é possível adiantar que a idéia de ordem fundamental parece avançar no STF, porém, paradoxalmente, não necessariamente para a extensão dos direitos fundamentais. Na década de 1990, assistimos em várias ocasiões ao STF reconhecer a precedência do legislador no desenvolvimento de certas normas constitucionais. Atualmente, o STF parece estar encontrando todas as respostas aos problemas da política no próprio texto constitucional, como no já famoso caso da fidelidade partidária.