OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL
Ampliação das competências das Turmas do STF: risco de “superdosagem”?1 de novembro de 2014, 8h01
Por Marco Túlio Reis Magalhães
O redirecionamento de antigas competências do Plenário para as turmas
do Supremo Tribunal Federal tem crescido nos últimos anos. Isso se
verifica,inclusive, em relação à mais recente alteração do Regimento
Interno do STF (RISTF) — ocorrida com a aprovação da Emenda Regimental 49, de 3 de junho de 2014.
Ressalte-se que o RISTF prevê as competências do Plenário nos artigos
5º a8º, já as competências das turmas concentram-se nos artigos 8º e
9º.Trata-se de órgãos decisórios colegiados da Suprema Corte. O Plenário
é composto por 11 ministros, sendo presidido pelo Presidente da
Casa,enquanto cada uma das duas Turmas da Corte é composta por cinco
ministros e há um rodízio no exercício da presidência desses órgãos. O
Presidente do STF, por sua vez, não tem assento em nenhuma das Turmas.
Pouco a pouco, o que se verifica é a maior disposição e a aposta dos
membros da Corte em adotar medidas que desloquem competências
decisórias do Plenário do STF para o âmbito das Turmas da Corte, com a
esperança de trazer mais oxigenação, ânimo, disposição e agilidade ao
trabalho do Tribunal.
Contudo, à semelhança de quando se
administra um remédio para combater uma doença ou um distúrbio, é
preciso indagar: quais são as “interações medicamentosas”, “os efeitos
colaterais” possíveis e a “posologia” indicada para uma adequada
ampliação das competências das Turmas por meio de deslocamento de
competências do Plenário? Há risco de “superdosagem”?
Nesse caso, a quem recorrer?
Tomemos como mote essa lúdica forma de comparação para pensar o
problema aqui enfrentado. Para se ter uma noção concreta das medidas
adotadas pelo STF para ampliar as competências das suas Turmas nos
últimos anos,menciono duas recentes modificações do RISTF. Em primeiro
lugar, os ministros do STF aprovaram, em Sessão Administrativa de
18.05.2011, a Emenda Regimental 45, de 10 de junho de 2011 (DJ de
15/11/2011). Tal medida atribuiu às Turmas as seguintes competências:
“Art. 9º (RISTF). Além do disposto no art. 8º, compete às
Turmas:
I – processar e julgar originariamente:
(...)
d) os mandados de segurança contra atos do Tribunal de Contas
da União, do Procurador-Geral da República e do
Conselho Nacionaldo Ministério Público;
e) os mandados de injunção contra atos do Tribunal de Contas da União e dos Tribunais Superiores;
f) os habeas data contra atos do Tribunal de Contas da União e do Procurador-Geral da República;
g) a ação em que todos os membros da magistratura
sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da
metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam
direta ou indiretamente interessados;
h) a extradição requisitada por Estado estrangeiro.”
Segundo notícia veiculada na página do Supremo, o objetivo de tal
medida seria dar “mais celeridade às ações que tramitam no STF e
decorreu da percepção de que, enquanto cresce a pauta do Plenário,
diminui sensivelmente a das Turmas, em razão da queda da quantidade de
recursos extraordinários e agravos de instrumentos (responsáveis por
cerca de 92% dos processos que chegam a esta Corte).”[1]
Não se
pode esquecer que o “remédio” adotado é associado ao uso de
outros“medicamentos” já “prescritos”. Um deles é a aplicação da
sistemática da repercussão geral, que tem relação direta com a
diminuição de processos julgados pelos órgãos colegiados do STF. É que,
via de regra, o Tribunal se vale de um mecanismo “inibidor da absorção”
de novos processos(devolução com base em processo-paradigma) até que se
encontre um “anticorpo” definitivo para o problema (decisão final pela
sistemática de repercussão geral).
De todo modo, é intuitivo que o
deslocamento de competências do Plenário para as Turmas tem impacto
direto na redução de processos que aguardam julgamento pelo Plenário. A
resposta a esse estímulo tem funcionado em processos que, por vezes, não
apresentavam grande complexidade e que poderiam ser decididos com
agilidade, caso fossem logo levados a julgamento. Nesse ponto, pode-se
dizer que o “remédio” adotado está surtindo o efeito esperado (“feedback
negativo” para a “homeostasia”).
Isso pode ser ilustrado, por exemplo, a partir de diversos mandados de
segurança da relatoria do ministro Gilmar Mendes, julgados pela 2ª
Turma do STF, que tratavam de questões relativas a concurso público do
Ministério Público da União (revisão de provas objetivas e subjetivas,nulidade das etapas do certame, impugnação a cadastro de reserva, direito à nomeação no prazo de validade do concurso).[2]
O fato de a autoridade coatora ser o Procurador-Geral da República e o
fato de se tratar de um concurso de abrangência nacional desencadearam
uma gama de ações repetitivas, não necessariamente dotadas de alta
complexidade e portadoras de interesses eminentemente subjetivos e
individuais.
Posteriormente, no decorrer da Sessão Plenária de 4
de dezembro de 2013, houve nova manifestação favorável de ministros da
Corte para deslocar mais competências do Plenário para as Turmas, a fim
de englobar ações contrato dos os atos do CNJ que não fossem emanados
pelo seu Presidente. É que,naquela assentada, o Plenário havia dedicado
toda a tarde de trabalho para decidir sobre processos de concurso
público para provimento de serventias extrajudiciais, que detinham
natureza eminentemente subjetiva e ligados a interesses eminentemente
individuais.[3]
Não tardou muito para que a proposta indicada
acima e outras importantes mudanças fossem acolhidas, em Sessão
Administração de 28 de maio de 2014,com a aprovação da Emenda Regimental
49, de 3 de junho de 2014 (DJe05/06/2014). Foram redirecionadas às
Turmas as seguintes competências:
“Art. 9º (RISTF). Além do disposto no art. 8º, compete às
Turmas:I – processar e julgar originariamente:
(...)
c) a reclamação que vise a preservar a
competênc do Tribunal ou a garantir a autoridade de suas
decisões ou
Súmulas Vinculantes;
d) os
mandados de segurança contra atos do Tribunal de Contas da
União e do Procurador-Geral da República.”
(...)
i) as ações contra o Conselho Nacional de
Justiça ou contra o Conselho Nacional do Ministério
Público, ressalvada a competência do
Plenário;
j) nos crimes comuns, os Deputados e Senadores, ressalvada a
competência do Plenário, bem como apreciar pedidos de
arquivamento por atipicidade de conduta;
k) nos crimes comuns e de responsabilidade, os Ministros de Estado e os
Comandantes da Marinha, do Exército e da
Aeronáutica,ressalvado o disposto no art. 52, I, da
Constituição Federal,os membros dos Tribunais
Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de
missão diplomática de caráter permanente,
bem como apreciar pedidos de arquivamento por atipicidade da conduta.”
É certo que direcionar às Turmas o processamento e o julgamento de
reclamações e de ações contra o CNMP e o CNJ, ressalvada a competência
do Plenário para os atos dos Presidentes desses Conselhos, passa a
exigir delas uma adaptação e um novo ritmo (“anabólico”), além de
acrescer muita importância ao peso dos seus julgamentos.
Isso é
mais evidente no deslocamento de competências penais para crimes comuns
de Parlamentares (“tarjas pretas”) — ressalvadas certas atribuições do
Plenário — e para crimes comuns e de responsabilidade de outras
autoridades, que reflete mudanças significativas quanto ao peso político
e simbólico dado às decisões das Turmas e quanto à importância de uma
análise mais aprofundada da dinâmica e da funcionalidade inerentes ao
funcionamento de tais colegiados (sua “homeostasia”).
Conforme
registrado nos debates de aprovação da Emenda Regimental 49/2014, há
também interesse manifestado por alguns ministros para estabelecer novas
hipóteses de deslocamento de competências do Plenário para as Turmas
(“feedback negativo” para a “homeostasia”) para: apreciação de mandados
de segurança contra atos dos Presidentes da Câmara dos Deputados e do
Senado
Federal e contra atos do Presidente da República em casos de
desapropriação de terras (ministro Roberto Barroso); apreciação de
mandados de segurança contra atos de Comissões Parlamentares de
Inquérito e ações sobre conflitos federativos entre estados e entre
estes e a União(ministro Celso de Mello).[4]
São relevantes as razões justificadoras de tais medidas, ligadas à
celeridade na prestação jurisdicional, à funcionalidade e à otimização do
trabalho dos ministros e dos órgãos colegiados,ao descongestionamento
da pauta do Plenário, à concentração de casos mais relevantes e de
repercussão geral no Plenário (“efeitos” esperados).
Trata-se
de uma experimentação interessante e que pode gerar mudanças favoráveis
ao melhor cumprimento das finalidades constitucionais e da dinâmica de
atuação do STF, em sintonia com a exigência constitucional de uma
razoável duração dos processos (artigo 5º, inciso LXXVIII, CF/88).
Mas há outras questões e desafios a serem considerados. Destaquemos
aqui apenas algumas provocações, à guisa de convite para investigações
futuras(como um catálogo de “interações medicamentosas” possíveis e que
são descobertas aos poucos).
Em primeiro lugar, é fato que há
um grande aumento de poder decisório das Turmas para a sedimentação da
jurisprudência da Corte, em razão das novas competências assumidas. Em
suma, os holofotes voltam-se com mais intensidade a elas. E é natural
que, entre os ministros de uma Turma ou entre as distintas Turmas, possa
haver divergências de entendimento.
Nesse sentido, parece salutar (“profilaxia”) um zelo maior por parte dos
ministros e um acompanhamento mais próximo por parte dos advogados para
que sejam considerados, nos julgamentos, os entendimentos de ambas as
Turmas, explicitando-se os posicionamentos existentes sobre os temas em
debate, de modo a evitar um excesso de recursos que reclamem a efetiva
uniformização da jurisprudência da Corte — sobretudo em casos não
pacificados anteriormente pelo Plenário e que eventualmente não tenham
tido seu julgamento afetado ao Plenário.
Além disso, é curioso que os casos levados a julgamento pelas Turmas
deixam de ter a visibilidade que propriamente teriam no Plenário, ao
menos em relação à premissa de que somente os julgamentos do Plenário
são transmitidos ao vivo (por televisão e rádio) e disponibilizados na
internet. Embora aparentemente insignificante tal observação, por
existirem outros mecanismos de publicidade, é interessante investigar as
suas repercussões quanto à dinâmica do processo decisório das Turmas
(que pode variar em relação à dinâmica do Plenário).
Até porque
não se deve olvidar que tais experimentações acabam servindo de espelho
ou molde para a tentativa de outros tribunais adotarem medidas
semelhantes.
De toda forma, é interessante que tanto o STF
quanto estudiosos em geral busquem realizar um acompanhamento
aprofundado das consequências jurídicas, jurisprudenciais e
extrajurídicas dessas mudanças, que não devem se limitar apenas à
constatação numérica de mais ou menos processos julgados (como a
continuidade de estudos do “tratamento” adotado).
A preocupação
com a consideração de outros parâmetros — como grau de recorribilidade,
número de casos afetados ao Plenário e comparação da qualidade e
profundidade dos debates e das decisões, por exemplo — parece necessária
para se enxergar melhor em que medida essas experiências repercutem no
curto e médio prazo.
Certo é que, em muitas situações, as
medidas adotadas podem ter efeitos colaterais extramuros muito mais
complexos do que se poderia inicialmente imaginar, capazes de afetar os
esperados efeitos da celeridade e da funcionalidade interna do Tribunal
(e promover “desequilíbrio homeostático”).
Exemplo disso é o
que ocorreu nessa última quinta-feira (30/10), quando a Mesa Diretora da
Câmara dos Deputados ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade
5.175 (rel. min. Gilmar Mendes) contra a Emenda Regimental 49/2014, na
parte em que deslocou para as Turmas do STF a competência do Plenário
para julgar crimes comuns de Deputados e Senadores.[5]
Nesse ponto, o “remédio” adotado estaria causando “irritações” e “outras
reações indesejadas”. E não por menos. Conforme ressaltou Luciano Fuck,
em artigo publicado na Coluna do Observatório da Jurisdição
Constitucional em 10 de maio de 2014,[6] o STF já vinha adotando
importantes medidas para agilizar a tramitação de processos e inquéritos
penais na Corte e para evitar a prescrição, ao adotar a instituição do
magistrado instrutor e a criação de seção de processos criminais.
Somar a tais medidas a autorização de que processos e inquéritos penais
tramitem nas Turmas do STF certamente ligou a luz de alerta de alguns
parlamentares não só quanto ao risco de maior celeridade no trâmite e
julgamento de processos, mas também quanto a aspectos relevantes da
própria dinâmica de julgamento das Turmas (quórum reduzido de votação,
possibilidade de divergência de entendimentos entre Turmas, possível
dificuldade de levar o caso ao Plenário, que sabidamente tem uma
dinâmica decisória distinta). Basta lembrar o problema do cabimento de
embargos infringentes nesse novo contexto de julgamento pelas Turmas – o
detalhe da exigência de quatro votos pela absolvição em Plenário. Seria
o caso de alterar o Regimento Interno ou deixar incabível a hipótese de
recurso?
Ao se apontar violação dos princípios da isonomia
(entre Parlamentares que sejam e não sejam Presidentes das Casas
Legislativas) e da razoabilidade(dado o impacto político da medida),
visto que se manteve como competência do Plenário do STF apenas o
julgamento dos Presidentes das Casas Legislativas, busca-se defender, na
ADI 5.175, que, nesses casos, a competência para julgamento de todos
deveria permanecer atribuída ao Plenário.
Independentemente
desse “efeito colateral” específico e interessante, que desafia a
própria autorregulação funcional dos órgãos internos do
Tribunal, a
experimentação atualmente fomentada pelo STF pode produzir mudanças
produtivas para o alcance das suas finalidades constitucionais e
institucionais.
Mas é preciso que acompanhemos esse
desenvolvimento com base em dados consistentes (“exames periódicos”),
para avaliar se a “dosagem” adotada está adequada para se alcançarem os
“efeitos” esperados e se as “reações adversas” justificam eventual
mudança de “tratamento”. De todo modo, a suspeita de “superdosagem”,
trazida pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, deverá ser apreciada
pelo próprio “médico” que “prescreveu” a medida.
Trata-se, com
certeza, de um aspecto interessante e bastante instigante, que não se
exaure numa mera redistribuição de tarefas internas de um órgão
decisório, devendo ser mais bem acompanhado por todos os interessados
pela atuação do Supremo Tribunal Federal!
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do
Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense
de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).