quarta-feira, 7 de maio de 2008

MST e o direito de propriedade

Fábio Konder Comparato, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, comenta em artigo publicado na Folha de São Paulo (A propriedade ou a vida, 07.05.2008), o discurso de investidura do novo presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, sobre a ilegalidade das invasões de terra pelo MST.


Segundo Comparato, é necessária uma reflexão sobre o direito de propriedade na modernidade: “até o século 18, nenhum sistema jurídico conheceu um direito individual tão completo e absoluto sobre coisas. No direito romano, havia três tipos de ‘dominium’, com diferente conteúdo: o quiritário, o provincial e o pretoriano. Na Idade Média, proliferaram, em toda a Europa ocidental, as mais variadas espécies de direitos sobre coisas, correspondentes ao esfacelamento do poder político, típico do feudalismo. A era moderna principia, nesse particular, com a promulgação do Código Napoleão, em 1804, verdadeira ‘Magna Carta’ da burguesia. Em seu artigo 544, fixou-se a célebre definição: ´A propriedade é o direito de fruir e dispor das coisas da maneira mais absoluta, contanto que não se faça dela um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos´. Portanto, no silêncio da lei ou do regulamento, o proprietário pode usar e abusar do seu direito à vontade.”


Prossegue o jurista afirmando que em oposição a esse absolutismo da propriedade privada, levantou-se o movimento socialista, de todos os matizes. Pregou-se a abolição total desse direito, como medida de estrita justiça. Ora, nada mais justifica manter essa dicotomia anacrônica: propriedade absoluta ou ausência de propriedade. “A propriedade ainda deve hoje ser reconhecida como direito fundamental, quando necessária à manutenção de uma vida individual ou familiar dignas. Fora dessa hipótese bem demarcada, estamos diante de um direito ordinário, que não goza das garantias fundamentais previstas na Constituição. Mas, em qualquer hipótese, o direito de propriedade não deve ser confundido com o poder de controle empresarial, que é um direito sobre pessoas, e não só sobre coisas.”


Por outro lado, lembra Comparato que a regra constitucional de que "a propriedade atenderá a sua função social" (artigo 5º, inciso XXIII) influi decisivamente sobre a proteção desse direito. Em caso de descumprimento do preceito, o juiz não pode, sem violar frontalmente a Constituição, conceder mandado liminar de manutenção ou reintegração de posse ao proprietário.


Em sua opinião, contudo, é preciso ir mais além. “Urge reconhecer, num regime republicano, que certos bens essenciais à vida digna de todo o povo não podem ser objeto de ilimitada apropriação privada. É exatamente o caso - e de modo cada vez mais claro com a exploração crescente dos biocombustíveis, em detrimento do direito à alimentação - das terras agrícolas.”

Um comentário:

Alceu Mauricio, Jr. disse...

Com todo respeito ao prof. Comparato, discordo da interpretação adotada. A CF propõe um equilíbrio entre propriedade privada e função social (art. 170), e não a predominância de uma sobre a outra. É certo que a propriedade não é um direito absoluto, mas a relativização da propriedade deve ser feita através dos mecanismos disponíveis no Estado de Direito (desapropriação, regulação, requisição etc). Não se pode, ao mesmo tempo, chamar a Constituição para justificar uma posição política e negá-la em seguida.