JUSTIÇA NA BOLÍVIA:
Matéria para fundamentar o constitucionalismo latino americano.
Folha de São Paulo 25 de janeiro de 2015
Morte anunciada
Bonecos em ruas da Bolívia significam sentença popular contra suspeitos de crime; justiçamento é comum entre indígenas.
SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A EL ALTO (BOLÍVIA)
O boneco de pano, feito com velhas camisetas costuradas a uma calça larga, pendia numa das esquinas do Distrito 7, um dos bairros da cidade de El Alto, de 1 milhão de habitantes, na região metropolitana de La Paz.
Pendurado no pescoço da imagem humana, sem rosto, um pequeno cartaz diz: "Nossa justiça".
"Aqui vai ocorrer uma condenação popular, pode ser um linchamento ou só uma surra. Mas o boneco só é colocado quando a comunidade já decidiu que vai dar o troco a algum ladrão ou assassino", diz Daniel (nome fictício), 58, dono de uma loja de ferragens.
"Geralmente, não é preciso dizer o nome de quem vai morrer --todos sabem, porque aqui todos nos conhecemos", afirma Daniel.
A Folha percorreu áreas dos distritos 7 e 8 para recolher histórias de moradores sobre como um linchamento é decidido.
"As pessoas começam a se avisar por mensagem de texto, por buzinas, é fácil perceber quando os adultos estão armando uma vingança dessas", diz Rita, 22.
Números aterradores de casos de justiça realizada pelas próprias mãos não figuram entre os êxitos da gestão de Evo Morales --empossado em seu terceiro mandato na última quinta-feira (22).
Segundo dados informais da Defensoria Pública, do Ministério da Justiça e de ONGs de direitos humanos, em 2005 teriam ocorrido cerca de 15 justiçamentos; em 2013, 79.
"É difícil ter estatísticas confiáveis, porque os casos são registrados como assassinatos comuns, e a imprensa de La Paz também os divulga assim. Para mapear, é preciso visitar essas localidades e conhecer o contexto de cada morte", diz à Folha o sociólogo Jorge Derpic, que prepara estudo sobre o tema para tese de doutorado pela Universidade de Austin.
Quando levados à Justiça, os justiceiros dizem que estão se apoiando na chamada Justiça Comunitária, aprovada pela Constituição atual, promulgada por Evo em 2009.
O projeto inicial era fazer com que convivessem de forma harmoniosa a Justiça comum com a praticada pelas tribos ancestrais da Bolívia.
Essa "lei indígena" permite que a comunidade decida como julgar e punir responsáveis por contravenções, sempre de acordo com a tradição de seus antepassados.
As condenações permitidas são o exílio do criminoso com sua família, pagamento de um tributo na forma de trabalhos para a comunidade ou mesmo, em alguns casos, chicotadas.
Os crimes de sangue não podem ser julgados pela Justiça Comunitária, e o governo reforça que a prática é ilegal. A questão é que, em lugares como El Alto, Potosí e Cochabamba, isso não é levado em conta.
"Nós aqui já sabemos como decidir esses casos --igual ao que se fazia antes, por meu pai, meu avô que ainda vivia na aldeia. A lei comunitária é só um apoio, um reconhecimento; no fundo, não mudamos o modo de conduzi-los", diz Moisés (nome fictício), dono de uma loja de frangos e ovos.
Os crimes punidos com linchamento estão relacionados, em geral, a roubos, estupros e assassinatos. Recentemente, um grupo de vizinhos queimou vivo um homem dentro de seu veículo, acusado de roubar uma loja do bairro.
Outra vítima, um taxista de 45 anos, atendeu dois jovens em uma corrida fora do bairro. Eram assaltantes, que o mataram para roubar o veículo. Os familiares dele se reuniram e capturaram a dupla. Amarrados a um poste, foram empapados em gasolina e queimados.
No último dia 20, em Culpina, um homem foi capturado por vizinhos, que o consideravam culpado de assaltar uma família local. O suposto criminoso foi amarrado a uma árvore, levou socos e pontapés e ficou deixado ali, sem roupa, até morrer de frio.
Outro caso emblemático ocorreu em Colquechaca, quando um estuprador foi reconhecido no próprio funeral por amigos do indígena a quem atacou. Detido ali mesmo, teve as mãos amarradas e a boca presa no queixo. Segundo crença indígena, isso impede que o espírito saia do corpo e apareça para vingar os assassinos.
Matéria para fundamentar o constitucionalismo latino americano.
Folha de São Paulo 25 de janeiro de 2015
Morte anunciada
Bonecos em ruas da Bolívia significam sentença popular contra suspeitos de crime; justiçamento é comum entre indígenas.
SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A EL ALTO (BOLÍVIA)
O boneco de pano, feito com velhas camisetas costuradas a uma calça larga, pendia numa das esquinas do Distrito 7, um dos bairros da cidade de El Alto, de 1 milhão de habitantes, na região metropolitana de La Paz.
Pendurado no pescoço da imagem humana, sem rosto, um pequeno cartaz diz: "Nossa justiça".
"Aqui vai ocorrer uma condenação popular, pode ser um linchamento ou só uma surra. Mas o boneco só é colocado quando a comunidade já decidiu que vai dar o troco a algum ladrão ou assassino", diz Daniel (nome fictício), 58, dono de uma loja de ferragens.
"Geralmente, não é preciso dizer o nome de quem vai morrer --todos sabem, porque aqui todos nos conhecemos", afirma Daniel.
A Folha percorreu áreas dos distritos 7 e 8 para recolher histórias de moradores sobre como um linchamento é decidido.
"As pessoas começam a se avisar por mensagem de texto, por buzinas, é fácil perceber quando os adultos estão armando uma vingança dessas", diz Rita, 22.
Números aterradores de casos de justiça realizada pelas próprias mãos não figuram entre os êxitos da gestão de Evo Morales --empossado em seu terceiro mandato na última quinta-feira (22).
Segundo dados informais da Defensoria Pública, do Ministério da Justiça e de ONGs de direitos humanos, em 2005 teriam ocorrido cerca de 15 justiçamentos; em 2013, 79.
"É difícil ter estatísticas confiáveis, porque os casos são registrados como assassinatos comuns, e a imprensa de La Paz também os divulga assim. Para mapear, é preciso visitar essas localidades e conhecer o contexto de cada morte", diz à Folha o sociólogo Jorge Derpic, que prepara estudo sobre o tema para tese de doutorado pela Universidade de Austin.
Quando levados à Justiça, os justiceiros dizem que estão se apoiando na chamada Justiça Comunitária, aprovada pela Constituição atual, promulgada por Evo em 2009.
O projeto inicial era fazer com que convivessem de forma harmoniosa a Justiça comum com a praticada pelas tribos ancestrais da Bolívia.
Essa "lei indígena" permite que a comunidade decida como julgar e punir responsáveis por contravenções, sempre de acordo com a tradição de seus antepassados.
As condenações permitidas são o exílio do criminoso com sua família, pagamento de um tributo na forma de trabalhos para a comunidade ou mesmo, em alguns casos, chicotadas.
Os crimes de sangue não podem ser julgados pela Justiça Comunitária, e o governo reforça que a prática é ilegal. A questão é que, em lugares como El Alto, Potosí e Cochabamba, isso não é levado em conta.
"Nós aqui já sabemos como decidir esses casos --igual ao que se fazia antes, por meu pai, meu avô que ainda vivia na aldeia. A lei comunitária é só um apoio, um reconhecimento; no fundo, não mudamos o modo de conduzi-los", diz Moisés (nome fictício), dono de uma loja de frangos e ovos.
Os crimes punidos com linchamento estão relacionados, em geral, a roubos, estupros e assassinatos. Recentemente, um grupo de vizinhos queimou vivo um homem dentro de seu veículo, acusado de roubar uma loja do bairro.
Outra vítima, um taxista de 45 anos, atendeu dois jovens em uma corrida fora do bairro. Eram assaltantes, que o mataram para roubar o veículo. Os familiares dele se reuniram e capturaram a dupla. Amarrados a um poste, foram empapados em gasolina e queimados.
No último dia 20, em Culpina, um homem foi capturado por vizinhos, que o consideravam culpado de assaltar uma família local. O suposto criminoso foi amarrado a uma árvore, levou socos e pontapés e ficou deixado ali, sem roupa, até morrer de frio.
Outro caso emblemático ocorreu em Colquechaca, quando um estuprador foi reconhecido no próprio funeral por amigos do indígena a quem atacou. Detido ali mesmo, teve as mãos amarradas e a boca presa no queixo. Segundo crença indígena, isso impede que o espírito saia do corpo e apareça para vingar os assassinos.