Em
novo livro, filósofo Jacques Rancière analisa contradições do sistema
representativo‘A democracia que nossas oligarquias defendem é, de fato, o
confisco da democracia’, diz pensador franco- argelino POR CARLA
RODRIGUES, ESPECIAL PARA O GLOBO 06/09/2014 7:00
O
filósofo franco-argelino Jacques Rancière, 64 anos, é desses pensadores
contemporâneos resistentes a classificações. Sua obra é normalmente
associada ao campo da estética, mas essa identificação não é suficiente
para delimitar seu percurso, marcado por tomadas de posição política
mesmo quando o assunto principal parece ser arte, imagem ou comunicação,
temas dos seus principais livros já traduzidos no Brasil, como “O
espectador emancipado” (Ed. WMF Martins Fontes) “A partilha do sensível”
(Ed. 34) e “O mestre ignorante” (Ed. Autêntica). Pautadas por uma ideia
de comunidade em que o conceito de comum não pretende excluir o direito
à diferença, as obras de Rancière fazem parte de outra forma de pensar a
política, para além de seu modelo moderno, fundamentado em estruturas
de representação dos partidos e instituições estatais de gestão da vida
social. Essas posições estão mais explícitas em seu novo livro, “O ódio à
democracia”, primeiro título publicado pela Boitempo Editorial, em que
ele defende a noção de comunidade como eixo orientador do seu pensamento
político, como ponto a partir do qual é preciso buscar a afirmação da
autonomia popular em relação ao Estado.
Escrito
para influenciar o debate político francês, marcado pelo avanço das
forças de extrema-direita, é de extraordinária pertinência no momento
político brasileiro, como observa o professor Renato Janine Ribeiro na
apresentação à edição brasileira. É também relevante ao momento político
brasileiro sua crítica à democracia representativa, cujo contraponto é a
democracia direta. “A representação nunca foi um sistema inventado para
amenizar o impacto do crescimento das populações. Não é uma forma de
adaptação da democracia aos tempos modernos e aos vastos espaços. É, de
pleno direito, uma forma oligárquica, uma representação das minorias que
têm título para se ocupar dos negócios comuns”, argumenta ele, para
dizer que a necessidade de representação não é resultado do crescimento
populacional, mas uma estratégia de manutenção do poder na mão de
poucos.
Para
Rancière, odeia a democracia todo aquele que pretende mantê-la restrita
a uma forma de governo apropriada pelas oligarquias em nome da promoção
de um bem comum para o povo, mas que mantém uma hierarquia sobre quem
detém o controle de afirmar o que é o bem comum. Em contrapartida, amar a
democracia é defendê-la como forma de organização social capaz de
promover direitos a todos aqueles que nasceram sem nenhum título
particular para exercer o poder, sem riqueza ou conhecimento, como ele
explica nesta entrevista.
O filósofo Jacques Rancière - / Arquivo/Laura Marques O que significa o ódio à democracia que dá título ao livro?
Quis
analisar e criticar uma tendência muito forte na França, cuja
particularidade é tomar a democracia não como forma de Estado, mas como
forma de vida em sociedade. Este ódio denuncia uma pretensa invasão da
igualdade e do igualitarismo em todos os domínios da vida e a relação
com uma figura central: o indivíduo da sociedade de consumo de massa,
que o ódio à democracia acusa de ser destruidor de todos os laços
sociais tradicionais. O que esse ódio expressa é o ódio à igualdade, e
está acompanhado do recuo efetivo da democracia e da igualdade nesses
Estados.A democracia, no estrito senso desse termo, é o poder do povo, o
poder de qualquer um, dos que não estão destinados ao exercício do
poder por nascimento, riqueza, conhecimento científico ou qualquer
qualidade especial.
O
senhor afirma que as sociedades, tanto no presente quanto no passado,
são organizadas pelo jogo das oligarquias. Não existe governo
democrático propriamente dito?
Insisti
no fato de que o “poder do povo” é impossível de ser contido em uma
fórmula constitucional. Há uma contradição entre esse poder e a forma
estatal em geral, que é sempre uma forma de privatização do poder de
todos em benefício de uma minoria. Por um lado, isso quer dizer que o
poder do povo deve ter seus organismos e suas formas de ação autônomas
em relação às formas estatais. De outro lado, isso quer dizer que aquilo
chamamos de democracia representativa é um modelo misto, submetido a
duas formas contraditórias. De um lado, nossos Estados se afirmam como
emanação do poder do povo. Mas o poder do povo supõe ou bem um sorteio,
ou bem mandatos eleitorais curtos, não acumuláveis e não renováveis. Nós
temos exatamente o contrário disso: uma classe de políticos
profissionais cujas frações concorrentes governam em alternância,
seguidos de análises e de soluções imaginadas por especialistas e por
comissões refratárias ao controle popular. A “democracia” que nossas
oligarquias defendem é, de fato, o confisco da democracia.
O
senhor afirma que “não vivemos em democracias”, mas recusa leituras
como as dos filósofos Hannah Arendt ou Giorgio Agamben, que identificam
dentro do estado democrático um estado de exceção. O que são os “Estados
de direito oligárquicos” em que o senhor afirma que vivemos?
Não
vivemos numa democracia porque a democracia não é uma forma de Estado
ou de sociedade, mas um poder que sempre excede as suas formas. Mas isso
não quer dizer que nós vivamos em um estado de exceção e que a
diferença entre as formas constitucionais seja negligenciável. Nós
vivemos em Estados oligárquicos moderados que são fundados sobre um
compromisso entre o poder das “elites” e o poder de todos. O sistema
eleitoral é, em todos os lugares, um pouco confiscado por uma classe de
políticos profissionais que trabalha em colaboração cada vez mais
estreita com os representantes das potências financeiras. Em
contrapartida, a liberdade de informação, de associação, de reunião e de
manifestação permitem a existência de uma vida democrática que
transborda as simples formas parlamentares e estatais da representação
do povo. Esse é um ponto fundamental na minha concepção da democracia:
supõe a existência de um poder próprio do povo em relação à máquina
estatal. A democracia não é uma questão de instituições, mas de
atividade, uma questão de imaginação. Foi o que aconteceu ontem nas
ruas,nas fábricas ou nas universidades, é o que acontece hoje na
internet, na circulação de informação e nas formas de mobilização que
passam pelas redes sociais, pela ocupação das praças e pela sua
transformação em espaço político. A tarefa democrática é dar ao povo uma
figura autônoma, separada da que se encontra confiscada pelo poder
estatal.
A
democracia como um valor a ser preservado a qualquer custo na vida
política pode nos levar a pensar que quanto mais democracia — no sentido
de mais abertura aos que até ali estavam excluídos da democracia — mais
ameaça a ela?
Esse
tipo de análise toma os efeitos como causas e parte do fato de que
populações que são mais ou menos rejeitadas às margens da sociedade,
pela extensão sem limite da lógica capitalista, alimentam em parte os
partidos eleitorais xenófobos, racistas ou fundamentalistas. Mas esse
fenômeno é uma reação ao caráter disfuncional do sistema eleitoral e à
ausência de uma verdadeira alternativa à lógica dominante. Na França, os
partidos oficiais de direita e de esquerda monopolizam o poder para
fazer uma política econômica igualmente a serviço das grandes potências
financeiras,e a extrema-direita torna-se a única forma a se apresentar
como exterior ao sistema dominante. O que ameaça a democracia é a
ligação cada vez mais estreita entre a oligarquia econômica e a
oligarquia estatal. Os pretensos riscos da democracia são de fato
consequências do confisco da democracia por essas oligarquias.
A
figura do “homem democrático” se sobrepõe ao consumidor, ao defensor
das minorias identitárias, se resume a meras demandas por direito
individual?
A
noção de democracia liberal é uma noção equivocada. Sob esse nome,
geralmente se quis designar um sistema em que o poder coletivo encarnado
no Estado seria contrabalançado pelos direitos individuais. Mas os
indivíduos cuja tradição dita liberal defenderam esses direitos eram em
primeiro lugar os proprietários. É a figura do proprietário
esclarecido, consciente da ligação entre a coisa comum e seus interesses
privados, que a democracia liberal identificou como cidadão, é o
governo das elites que ela procurou para se garantir em nome do “bem
comum”. A filosofia política moderna impôs uma visão da política que se
concentra sobre a relação entre comunidade e indivíduos. A filosofia
política antiga sabia que se trata de uma relação entre comunidades: não
simplesmente de classes opostas por seus interesses econômicos, mas
entre maneiras de instituir comunidades. O poder do “demo”, que não é o
poder das classes populares.
Em
certo momento o senhor define a democracia como um processo de luta
contra a privatização da felicidade e do bem-estar, como luta contra a
separação entre o público e o privado. Por quê?
Frequentemente
se considerou a separação entre o público e o privado como uma marca do
bom governo, protetor dos indivíduos contra a empreitada estatal. Mas
eu gostaria de lembrar que essa separação tinha originalmente outra
função: excluir da política a maioria dos humanos, confinando-os à
esfera privada. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os
trabalhadores,durante muito tempo considerados apenas no âmbito
doméstico. Foi também o que aconteceu tradicionalmente com as mulheres,
consideradas dependentes de seus pais ou maridos e restritas ao campo do
casamento ou da família. Mas essas lutas não confirmam os “limites” da
democracia. Elas confirmam,ao contrário, as capacidades de sua extensão.
Essas formas polêmicas de extensão da democracia transbordam ao que se
reduz, frequentemente, nas lutas das minorias defensoras de suas
identidades. Trata-se antes de sair da condição de “minoria” na qual
está a grande maioria dos humanos,confinados numa condição subalterna.
Carla Rodrigues é professora de Filosofia (IFCS/UFRJ)
sábado, 6 de setembro de 2014
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