sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Assunto: A política por todos os lados
Data: Sex, Novembro 25, 2011
Sex, 25 de Novembro de 2011.
07:50:00.
VALOR ECONÔMICO
EU & FIM DE SEMANA
A política por todos os lados
Por Marcos Nobre e José Rodrigo Rodriguez
Para o Valor, de São Paulo
Dias depois da decisão do STF que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo
sexo, militantes de movimentos de defesa dos direitos de homossexuais realizaram um
abraço simbólico no prédio do tribunal em apoio à medida. Nessa manifestação, a
senadora Marinor Brito (PSOL-PA) deu a seguinte declaração: "O movimento dá uma
resposta muito positiva e um reconhecimento do papel que o Supremo cumpre neste
momento e já que o Congresso Nacional não se manifestou até hoje. Não queremos a
judicialização da política. Queremos que o Congresso assuma o seu papel de
protagonista na alteração e na construção das leis".
Comentando a mesma decisão, o advogado Ives Gandra Martins, localizado em posição
oposta à da senadora do PSOL no espectro político, disse o seguinte: "Sempre fui
contra o ativismo judiciário. O que a Constituição escreveu é o que tem de
prevalecer. É evidente que não estou de acordo com os fundamentos da decisão.
Entendo que o STF não pode se transformar num constituinte".
Em ambos os casos, seja para apoiar ou para criticar a decisão, seja à esquerda ou à
direita, seja utilizando a ideia de "judicialização da política", seja a de
"ativismo judicial", o raciocínio subjacente é o mesmo: um Poder (o Judiciário) está
invadindo indevidamente o domínio de outro Poder (o Legislativo). O que mostra, de
saída, que essas duas ideias são, na verdade, complementares. Seria como que um
mesmo processo, visto ora da perspectiva da política "invadida" pela lógica
judicial, ora da perspectiva do próprio "invasor".
"Quando tudo é 'política', torna-se impossível diferenciar a atividade de um juiz da
atividade de um deputado ou de um ministro"
Mas, apesar de apontarem essencialmente para o mesmo fenômeno, a expressão
"judicialização da política" é a mais comum. Está por toda parte e tem múltiplas
utilidades no debate público, sendo todas elas sempre de censura e de condenação.
Serve para criticar o Poder Legislativo, que não estaria "fazendo a sua parte".
Serve para criticar o Poder Judiciário, que estaria invadindo a competência do Poder
Legislativo sem ter legitimidade para isso (já que juízes não são "eleitos", diz
ainda o raciocínio). Serve também para denunciar uma situação de despolitização
geral da sociedade, capitaneada pelo "inchaço" do Executivo, o que obrigaria cidadãs
e cidadãos a recorrer ao Judiciário como ato recurso de última instância de proteção
política. Em todos esses diferentes raciocínios, o pressuposto é o de que as
instituições não estariam funcionando "normalmente", não estariam funcionando "como
deveriam".
Esses diferentes usos de "judicialização da política" pressupõem que a atuação do
Judiciárioseria um sintoma de que a democracia não está em seu "funcionamento
normal". No fundo, é raciocínio que tem por base três teses implícitas de como "deve
funcionar" uma democracia.
Primeira: os Poderes são três e devem ter fronteiras claras e rígidas entre eles,
estabelecidas de antemão. Segunda: o Legislativo deve ser o centro de toda a
produção normativa. Terceira: que a única forma de representação política legítima é
a do mandato eletivo, seja no Legislativo, seja no Executivo. Nessa sequência de
teses, fica claro também que o papel do Judiciário nesse esquema deve ser apenas o
de "aplicar a lei", no sentido de que a "lei" seria sempre clara, cabendo aos
tribunais unicamente o papel de serem porta-vozes do legislador e às juízas e juízes
o papel de "boca da lei".
Ampliar imagem
E, no entanto, a mera enunciação dessas teses implícitas é suficiente para mostrar
seu total descolamento da realidade. Há muito a representação política deixou de ter
um padrão único. Estão aí diferentes formas de representação que não seguem o padrão
da eleição para o Legislativo e são aceitas como legítimas. Há conselhos de diversos
tipos, há agências reguladoras, conferências nacionais. Isso também mostra que há já
algum tempo o Legislativo deixou de deter de fato o monopólio da produção normativa
- se é que alguma vez o teve realmente.
Em relação ao Judiciário, o pressuposto é ainda mais problemático. A visão da
atividade judicial como uma simples dedução de uma lei que não poderia ser
interpretada de outra maneira se choca com o fato elementar de que toda nova
sentença é, na verdade, criadora de normas. É uma criação de normas segundo regras,
segundo princípios interpretativos disponíveis, com certeza. Uma criação de normas
regulada pelo código específico do direito, que, em última instância, deriva sua
lógica e sua legitimidade da Constituição. Mas não deixa por isso de representar a
criação de novas normas.
O mero reconhecimento dessa realidade de fato mostra que toda pretensão de fixar de
antemão as fronteiras e limites de cada um dos Poderes (mesmo que eles sejam apenas
três) leva a uma posição que não consegue entender o que está se passando. Mas há
ainda uma consequência mais grave: trata-se de uma das maneiras mais eficazes de
impedir a mudança social. Trata-se de um verdadeiro bloqueio ao livre exercício da
imaginação institucional pela sociedade. E, em última instância, leva a uma posição
conservadora, que costuma falar sempre em nome do direito posto e não do direito que
está por vir.
Afinal, quando ouvimos acusações generalizadas ao Poder Judiciário por "se meter
onde não foi chamado" e "avançar sobre uma agenda que deveria ser do Parlamento",
não estaríamos assumindo uma posição conservadora? Não estaríamos nos colocando na
posição daqueles que querem impedir por decreto a mudança institucional para
congelar o desenho de nossas instituições? E isso vale igualmente para o oposto
complementar da "judicialização da política", o chamado "ativismo judicial".
Com esses questionamentos, também não queremos dizer que tudo estaria "funcionando
muito bem", à maneira do cientista que apenas "observa e explica" fenômenos sociais
e políticos. É claro que a atuação do Poder Judiciário na maioria dos casos não vem
acompanhada da devida justificação diante da esfera pública. Quem já teve a
oportunidade de ler o resultado de um julgamento do STF pôde perceber como esse
documento é tão confuso e complexo que muitas vezes torna impossível identificar com
clareza as razões da decisão.
Mas, seja como for, o resultado final costuma ser claro: as cortes são capazes de
decidir os problemas que examinam. No entanto, a argumentação que fundamenta as
decisões costuma ser ou altamente confusa ou meramente telegráfica. É comum
encontrar decisões colegiadas praticamente ser argumentação ou com tantos
fundamentos quanto os juízes que atuam nelas. Afinal, a corte não se reúne para
redigir um voto vencedor com começo, meio e fim. Decide por mera maioria de votos.
Por isso mesmo, a decisão final costuma ganhar as feições de um labirinto mitológico
do qual ninguém consegue sair com destreza, nem os juristas de profissão. Os votos
dos ministros se sucedem de maneira confusa, entremeados pela transcrição dos
debates e pedidos de vista, sem que haja um apanhado final em que os argumentos que
sustentam o resultado sejam organizados e hierarquizados. É suficiente baixar do
site do STF a decisão de qualquer caso importante para ver como isso se dá.
No entanto, nada disso justifica submeter o Judiciário ou qualquer um dos Poderes a
amarras predeterminadas, pensadas para bloquear a mudança social. Podemos lutar para
que os Poderes justifiquem suas razões de agir, para que fundamentem melhor suas
decisões. Mas essa luta pela justificação não deve ser confundida com a defesa de um
padrão naturalizado de separação de Poderes, por exemplo.
Essa confusão entre, de um lado, um padrão predeterminado e abstrato e, de outro
lado, um funcionamento concreto do Judiciário de difícil compreensão tem sido usada
sub-repticiamente para criticar e tentar congelar movimentos de mudança que vêm
desse poder. Utiliza uma barreira normativa imaginária, criada por teorias fixadas
no século XIX, para bloquear arranjos institucionais em formação, próprios de uma
democracia ainda muito recente e cheia de brechas e de possibilidades de
intervenção, como é o caso da democracia brasileira.
As decisões dos organismos de poder, a maneira pela qual as instituições funcionam,
têm consequências claras sobre a distribuição de poder entre os cidadãos e outros
entes sociais. Quando, por exemplo, o Judiciário começou a exigir que determinados
procedimentos médicos fossem praticados pelos planos de saúde e certas drogas fossem
adquiridas pela administração pública, o poder privado e o poder público foram
questionados.
De um lado, o Judiciário afirmou que os planos de saúde não eram livres para formar
seus preços sem levar em conta determinadas doenças e, de outro, que a administração
não poderia criar unilateralmente uma lista de drogas a ser adquiridas e
distribuídas para a sociedade. Nesses dois casos, ao modificar os termos contratuais
e tocar na forma de agir do poder público, o Judiciário mudou a balança de poder
entre os entes sociais e estatais envolvidos e forçou a criação de outros
procedimentos e regras para a sua ação e interação mútua.
Há quem afirme que o Judiciário não deveria se intrometer na liberdade de contratar
e nas atribuições da administração pública, por princípio e por definição. Há quem
afirme até que, ao fazer isso, esse poder põe em risco o funcionamento da economia e
da democracia. Preferimos ver esse suposto "mau comportamento" dos juízes como sinal
de mudança institucional, como uma oportunidade de redefinir as fronteiras entre os
Poderes e exercitar a imaginação institucional para aperfeiçoar a democracia e
tornar a economia menos selvagem.
Como se vê nesses exemplos, em um Estado Democrático de Direito é na esfera política
- e não diretamente na "tradição" ou no âmbito do mercado - que se definem, em
última instância, as feições das diversas posições de poder, o desenho das
instituições. E a política, como se percebe, está por toda parte, não apenas no
Parlamento. Pois se há uma "política" sendo praticada nos partidos e no Parlamento,
há também uma "política" ocorrendo no PoderJudiciário, no Poder Executivo, nos
conselhos, agências reguladoras e outros mecanismos deliberativos.
Como diferenciar essas diversas formas de "política" para que toda a dinâmica
institucional não se confunda com o mero jogo de interesses? Pois quando tudo se
torna "política" nada mais o é. Quando tudo é "política", torna-se impossível
diferenciar a atividade de um juiz da atividade de um deputado ou de um ministro e
passamos a cobrar deles posturas e padrões de ação que não correspondem à sua
posição no concerto dos Poderes.
Para evitar esse desfecho, é necessário levar em consideração, no caso do
Judiciário, aquilo que lhe é específico, aquilo que estrutura o que é a "política"
nesse âmbito institucional específico: o "código do direito". Sem se esquecer de que
o próprio significado do que é considerado mais amplamente como "direito" é mutável
no tempo e abrange muito mais do que a simples institucionalização realizada pelo
Poder Judiciário. E é exatamente isso que não está sendo levado em conta por quem
utiliza expressões como "judicialização da política" ou "ativismo judicial".
Nesse contexto em que os diversos âmbitos da política são pensados em suas
especificidades, é preciso, por exemplo, revisitar a própria ideia de separação de
Poderes e repensar seus termos. Os Poderes precisam mesmo ser três? Sua relação
entre si precisa ser aquela fixada pela teoria jurídica dominante no século XIX? Ou
será possível retomar em novos sentidos a ideia original de Montesquieu, que não
fala em três poderes, mas na ideia de frios e contrapesos?
Nessa ordem de razões, o que não se admite é que haja um poder que decida
unilateralmente, ou seja, cujas decisões não passem por uma instância revisora. Não
há espaço para decisões sem justificativa, tomadas por mero capricho ou pela simples
força das circunstâncias. Mas há espaço para mais "poderes", para outras maneiras de
desenhar o Estado de Direito e, portanto, de distribuir o poder entre os diversos
entes sociais.
Há sempre uma parcela de desigualdade, de sofrimento humano que fica fora do desenho
institucional e procura forçar sua entrada por intermédio dos canais institucionais,
pela desobediência civil ou mesmo por meios violentos. E quanto mais cristalizadas
forem as instituições, quanto menos elas forem capazes de ouvir o sofrimento social,
maior a possibilidade de que a violência tome conta da sociedade com o fim de romper
o tecido institucional.
Um pensamento institucional crítica e radicalmente democrático precisa assumir esses
dois pontos de vista ao mesmo tempo. Precisa ver as instituições por dentro, a
partir da sua racionalidade atual, e precisa olhar para elas de fora para descobrir
seus limites e refletir sobre novas possibilidades, novos desenhos institucionais
capazes de dar conta do que hoje está excluído.
Nem sempre o desfecho dessa dinâmica será pacífico, como a história tem demonstrado.
Por exemplo, foi preciso correr muito sangue nas ruas para que os diversos
mecanismos de proteção social fossem criados e novos desenhos institucionais
promovessem a mudança do estado mínimo para um estado social. E isso envolveu
mudanças decisivas na própria concepção do código do direito, das suas formas
institucionais, da definição social do que seja o "jurídico".
Seja como for, nesse campo, o da imaginação institucional, está sendo decidido o
destino de nossa democracia. O pior que se pode fazer para bloquear a discussão
ampla e aberta desse destino é pretender impor de antemão que configurações as
instituições devem ter. Ideias como "judicialização da política" ou "ativismo
judicial" apenas bloqueiam a compreensão do momento presente e paralisam as
discussões democráticas que temos de encarar.
José Rodrigo Rodriguez é pesquisador do Cebrap e editor da Revista Direito GV.
Marcos Nobre é professor do Departamento de Filosofia da Unicamp e pesquisador do
Cebrap
Versão condensada de "A Judicialização da Política: Déficits Explicativos e
Bloqueios Normativistas", texto apresentado na 35ª Anpocs, Caxambu (MG), no fórum
Dilemas da Modernidade Periférica, e que aparecerá na revista "Novos Estudos
Cebrap", número 91
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário