sábado, 13 de outubro de 2012

Mensalão e Cidh II

Luiz Flávio Gomes




TENDÊNCIAS/DEBATES Folha de São Paulo 13 de outubro de 2012



A Corte da OEA pode interferir na decisão do STF sobre o mensalão?



sim



Decisão anterior se encaixa como uma luva



A Folha do último dia 3, ao noticiar a intenção de Valdemar Costa Neto (PR-SP) de ir à Corte Interamericana contra o julgamento do STF no mensalão, informou que "o órgão internacional não tem poder de interferir em um processo regulado pelas leis brasileiras, segundo ministros e ex-ministros da corte. Quando a OEA condena, as punições são aplicadas contra os países que fazem parte da organização. Entre as penas estão a obrigação de pagar indenizações a vítimas de violações de direitos humanos".



A Corte Interamericana não é um tribunal que está acima do STF -ou seja, não há hierarquia entre eles. É por isso que ela não constitui um órgão recursal. Porém, suas decisões obrigam o país que é condenado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. "Pacta sunt servanda": ninguém é obrigado a assumir compromissos internacionais. Depois de assumidos, devem ser cumpridos.



De forma direta, a corte não interfere nos processos que tramitam em um determinado Estado membro sujeito à sua jurisdição (em razão de livre e espontânea adesão). De forma indireta, sim.



A sensação que se tem, lendo o primeiro parágrafo acima, é de que a corte não teria poderes para modificar o que foi decidido pelo STF e que as sanções da corte são basicamente indenizatórias. Nada mais equivocado.



No caso "Barreto Leiva contra Venezuela", a corte, em sua decisão de 17 de novembro de 2009, apresentou duas surpresas.



A primeira é que fez valer em toda a sua integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição (direito de ser julgado duas vezes, de forma ampla e ilimitada). A segunda é que deixou claro que esse direito vale para todos os réus, inclusive os julgados pelo tribunal máximo do país, em razão do foro especial.



Esse precedente da Corte Interamericana se encaixa como luva ao processo do mensalão. Mais detalhadamente, o que a corte decidiu foi o seguinte: "Se o interessado requerer, o Estado [a Venezuela, no caso] deve conceder o direito de recorrer da sentença, que deve ser revisada em sua totalidade".



A obrigação de respeitar o duplo grau de jurisdição, continua a sentença da Corte Interamericana, deve ser cumprida pelo Estado, por meio do seu Poder Judiciário, em prazo razoável (concedeu-se o prazo de um ano). De outro lado, também deve o Estado fazer as devidas adequações no seu direito interno, de forma a garantir sempre o duplo grau de jurisdição, mesmo quando se trata de réu com foro especial por prerrogativa de função.



Ainda ficou dito que a corte iria fiscalizar o cumprimento da sentença e que o país condenado deve cumprir seus deveres de acordo com a Convenção Americana.



O julgamento do STF, com veemência, para além de revelar a total independência dos seus membros, está reafirmando valores republicanos de primeira grandeza, como reprovação da corrupção, moralidade pública, retidão ética dos agentes públicos e partidos, financiamento ilícito de campanhas eleitorais etc. O valor histórico e moralizador dessa sentença é inigualável.



Mas do ponto de vista procedimental e do respeito às regras do jogo do Estado de Direito, o provincianismo e o autoritarismo do direito latino-americano, incluindo especialmente o brasileiro, apresentam-se como deploráveis.



Por vícios procedimentais decorrentes da baixíssima adequação da, muitas vezes, autoritária jurisprudência brasileira à jurisprudência internacional, a mais histórica e emblemática de todas as decisões criminais do STF pode ter seu brilho ético, moral, político e cultural nebulosamente ofuscado.



LUIZ FLÁVIO GOMES, 55, doutor em direito penal, fundou a rede de ensino LFG. Foi promotor de justiça (de 1980 a 1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001)

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