segunda-feira, 20 de agosto de 2012
A Juíza que só absolveu uma vez, a opinião pública e o STF
Por João Carlos Castellar
Os jornais noticiaram que três jovens russas integrantes de uma banda punk foram condenadas a dois anos de prisão (já estão presas há cinco meses) porque teriam invadido a mais importante igreja ortodoxa de Moscou e lá gravado um protesto musical contra o Presidente Putin.
Elas têm advogado que as representam no Tribunal, razão pela qual não vou comentar o caso em si, exceto para dizer que parece realmente ofender o princípio iluminista da proporcionalidade a medida da pena que receberam, tanto mais quando esta é confrontada com a conduta que teriam cometido, tida por ofensiva ao sentimento dos religiosos ortodoxos ou à honra do Presidente.
Inúmeros foram os atos públicos de repúdio a tal condenação, havendo manifestações em várias metrópoles pelo mundo afora e mesmo pronunciamento de chefes de estado, entre outros, do Presidente Barack Obama, dos Estados Unidos e Ângela Merkel, da Alemanha, todos reclamando de violação a Direitos Humanos, nomeadamente à liberdade de expressão e manifestação do pensamento artístico e político.
O que mais me espantou, porém, não foi este aspecto do caso. Assustou-me, sobretudo, não ter sido objeto de indignação na mídia em geral a terrificante notícia de a juíza que sentenciou as moças, a magistrada Marina Sirova, ser “conhecida por só ter concedido uma única absolvição em sua carreira”!
Note-se que através do gancho representado pela grave sentença penal, a imprensa comenta os exageros da era Putin, aborda possíveis desmandos e outras exorbitâncias, mas não dá destaque ao fato de que uma magistrada de carreira só tenha absolvido um único réu em toda sua atividade judicante. Esta faceta do acontecimento parece a mim muito mais impactante do que a severidade intrínseca da condenação ou da repercussão global que obteve.
É verdade que o juiz está adstrito à lei e esta por vezes pode ser dura: dura lex, sed lex. Por outro lado, como diz o constitucionalista espanhol Roberto Gargarella, “graças às incertezas que existem em matéria interpretativa, os juízes podem tomar decisões com uma margem de manobra extraordinariamente grande” .
Mesmo assim, ainda que não se assegurasse ao Juiz a possibilidade de interpretar amplamente o texto legal – e na Rússia não deve ser tão diferente daqui – permanece a indagação que não quer calar: seria possível, aceitável, razoável, sem que configurasse algum tipo de abuso a ser reparado por órgãos corregedores, um magistrado julgar sistematicamente em desfavor dos acusados em geral? Aliás, é crível tenha um juiz absolvido somente uma vez em toda sua vida profissional, tanto mais se tratando do exercício da judicatura em Moscou, capital de uma das oito maiores potências do globo? Ao que narra o noticiário, sim, isto está efetivamente ocorrendo.
Esta surpresa, no entanto, não se justifica. Afinal, mutatis mutandis, é isso, lamentavelmente, que nos dias que correm se espera dos Juízes criminais brasileiros: expecta-se que condenem e que o façam inclementemente. Se o magistrado absolve quando a opinião pública “pede” que puna, se solta quando se espera que mantenha preso, se concede qualquer benefício quando o condenado é rotulado “perigoso”, sofrerá o corajoso e infausto juiz virulentas críticas, será apontado como irresponsável, receberá injúrias pessoais, correndo o risco até mesmo de se tornar alvo de procedimento disciplinar por seu ato, não raro considerado, inclusive no entender dos seus pares, como rebeldia ou temeridade.
Para que este distorcido quadro tenha ganhado entre nós contornos de tal modo acentuados, a atuação do Ministério Público tem sido tão relevante quanto deletéria. Com efeito, este órgão vem confundido a sociedade que deve representar com a chamada opinião pública, o que vem trazendo trágicas consequências à realização da Justiça.
De antemão, é preciso que se distingam os conceitos de sociedade e de opinião pública, esclarecendo que esta última carrega forte carga ideológica, posto que, mesmo nascendo de um debate público, por ser opinião não coincide com a verdade, mesmo porque erigida através canais ideologicamente orientados. Como anota Bobbio, a opinião pública não é a opinião do povo, uma vez que os espaços em que se forma não são autogovernados, mas administrados por potentes burocracias . Tampouco é a opinião da sociedade, que se constitui num sistema no seio do qual uma população compartilha de uma cultura e estilo de vida comuns, em condições de autonomia, independência e autossuficiência relativas . Diferem, portanto, a sociedade, cujos interesses o Ministério Público patrocina no processo penal, de alguma opinião pública que nela venha a se formar.
Deste modo, como soe acontecer, atuando em nome de certa opinião pública o Ministério Público se vê desprovido da neutralidade de que deveria estar imbuído, findando por não representar a sociedade em sua totalidade, mas apenas a determinada corrente de pensamento político, ou melhor, político-criminal, que por sua vez tem se afinado com doutrinas de “tolerância zero” e não com outras de perfil despenalizador ou descriminalizante.
Nesse embalo punitivo sobressai claro que o Ministério Público busca fazer a Magistratura de sua refém. O Parquet pede prisões, condenações e penas altas que exige sejam integralmente cumpridas. Não sendo estes reclamos atendidos, será o juiz destinatário da pretensão alvo de críticas, admoestações e, em alguns casos, até mesmo de suspeitas de comportamento irregular, pois os órgãos de mídia, que constroem a opinião pública ideologicamente orientada nos moldes que o Ministério Público defende, se encarregam de forma-la nesse sentido, desestabilizando a independência de que deve estar revestido o magistrado na sua tarefa de dizer o direito.
Não é por outras razões que a independência dos juízes e dos tribunais se constitui num dos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, tendo por finalidade precípua defender o Poder Judiciário dos demais Poderes do Estado. Na expressão de Carlos Alberto Conde da Silva Fraga, visa essa independência a assegurar a liberdade de decidir, ou seja, à imparcialidade do magistrado, quer perante as partes em litígio, quer perante a opinião pública, quer, até mesmo, perante uma excessiva carga de trabalho que possa levar a uma menor ponderação do caso sub judice e, consequentemente, a uma decisão menos justa ou menos correta .
Livre de injunções para cumprir a espinhosa função de julgar de maneira honrada e respeitada, o Magistrado não precisa punir sempre e severamente. E quando tiver que fazê-lo deve agir com equidade. A Justiça não é instrumento de vingança pessoal ou social. O magistrado tem que ser livre para julgar: nesse mister só deve se ater à lei e ao contido no processo; ouvir os argumentos das partes legitimadas para atuar; e decidir depois de realizar a ponderação acerca do peso de cada prova que estiver ao seu dispor.
Significativo que a notícia de que uma juíza moscovita que absolveu uma única vez em sua vida faça com que se rememorem estes valores, precisamente no momento em que o País assiste em tempo real a um dos mais importantes julgamentos de sua História. E nessa hora em que os mais altos magistrados da Nação estão em fulgurosa exposição é preciso que não se esqueça de que a opinião pública não é parte nessa causa sub judice. E mais: se acaso, burlando os controles de segurança, ela tiver conseguido se fazer presente no Plenário do Supremo Tribunal Federal necessário que seja expulsa de lá, pois um Poder Judiciário a ela submisso será fraco e essa tibieza retira dos jurisdicionados qualquer possibilidade de lutar contra toda ordem de injustiças. A injustiça feita a uma pessoa é ameaça para todas as demais.
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