segunda-feira, 1 de julho de 2013

Vontade popular


Valor



01/07/2013
Vontade popular pronta e acabada é presunção


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Por Fernando Limongi

As recentes manifestações surpreenderam a todos. O que querem? Por que agora? Por que tanta gente nas ruas? Sem ter respostas para estas perguntas básicas, difícil arriscar qualquer prognóstico sobre causas e consequências. Tudo pode acontecer, inclusive nada.
Nestas horas, é bom ter clareza sobre os princípios, sobre o básico. De outra forma, o gato vai vendido como lebre. Afinal, o que há de novo neste movimento, se é que não se trata vários movimentos? Afinal o que se contesta? O que precisamente é o "tudo que está aí" que os manifestantes querem erradicar?
O que está aí, em primeiro lugar é o governo representativo e sua convivência com manifestações populares entre eleições. O primeiro ponto a notar é que o governo representativo reserva uma posição ambígua, imprecisa mesmo, para o povo fora dos momentos eleitorais. Para ser exato, para usar uma expressão de James Madison, um dos criadores do governo representativo, o povo em sua capacidade ativa é excluído de qualquer papel ativo fora de eleições. O povo age ao eleger seus representantes e espera até a próxima eleição para se exprimir novamente. Representantes, uma vez eleitos, cumprem seus mandatos com alta dose de discrição.
Governantes, contudo, têm que ouvir a opinião pública e antecipar a manifestação do povo nas eleições futuras. Ouve-se a opinião pública, o que não necessariamente é o mesmo que ouvir o povo. Eleições são reguladas e busca-se garantir a igualdade de cada voto. O voto é secreto, eleitores podem ser identificados. A opinião pública é algo mais difuso, difícil de definir. Ninguém é o seu intérprete autorizado, ela se exprime, portanto, por várias vozes que, muitas vezes, são conflitantes. A igualdade que se impõe ao voto não se aplica à opinião pública e não há como se aplicar uma vez que a expressão é livre. Uns podem querer se expressar outros não. Uns podem ter mais recursos para se organizar, enquanto outros contam com facilidade para fazer barulho e ser ouvidos.
Entre eleições, governantes devem ouvir a opinião pública. Este é o modelo original. A liberdade de opinião e expressão é parte constitutiva do modelo. A de se organizar já é mais complicada e, por muito tempo, foi negada na prática. Muito do que hoje é corriqueiro, por exemplo, partidos políticos de oposição e movimentos sociais, originalmente era tomado como uma sedição, uma contestação subversiva a autoridade legítima.
Movimentos sociais testam e levam a uma redefinição constante da área aberta a contestação legítima. Uma coisa ficou clara no início das manifestações. Os governantes, por intermédio de suas polícias, se mostraram em descompasso com o entendimento da opinião pública de seus direitos. Governantes declararam que os movimentos eram ilegítimos e que deveriam ser reprimidos à força. Os manifestantes forçaram o recuo dos governos afirmando seu direito de se reunir e expressar suas demandas. A linha que dividirá o movimento legítimo do ilegítimo, onde termina a manifestação pacífica e começa o vandalismo, ainda está por ser traçada pela interação entre os manifestantes e a repressão policial. Uma coisa é certa: as práticas policiais precisam ser atualizadas.
Passando ao conteúdo das manifestações, uma vez mais, vale partir do básico. Não há nada de novo na insatisfação com a mesmice da política. Mais do que isto, a crítica à rotina de uma vida democrática destituída de opções reais não é propriamente nova ou específica ao Brasil. Sentimentos desta natureza estão presentes em todos os regimes democráticos ao redor do mundo. Parte desta frustração, paradoxalmente, é consequência direta da própria democratização dos governos representativos que trouxe consigo os partidos políticos e a profissionalização da atividade política. Porque vivemos em um regime democrático, somos governados por estes personagens mesquinhos, menores, que vivem da política, que só fazem isto para viver, incluindo correr atrás de dinheiro para financiar suas campanhas eleitorais.
Muito do que passa por novo ou é visto como específico ao Brasil não é senão a manifestação de velhas tensões inerentes ao governo representativo. Não é demais pedir cautela. Nem tudo está errado. Insatisfação e demandas por mudanças não é o mesmo que revolução. Isto não significa dizer que não há nada de novo no ar. Pode ser. Todos foram pegos de surpresa. A dimensão do movimento - o número de manifestações e de manifestantes assim como os lugares insuspeitos em que têm ocorrido - recomenda cautela nas interpretações.
Ainda assim, cabe se indagar o que as ruas clamaram que já não sabíamos. Não é verdadeiramente surpreendente que os cartazes carregados pedissem maior atenção à educação, saúde, transporte e combate a corrupção. Todos querem melhorar seu bem estar. Algum político busca algo diferente? Algum político acha que pode se eleger ou reeleger sem dar atenção a estes pontos? Alckmin e Haddad não diferem quanto a isto. Não há políticos do bem e do mal. Alckmin e Haddad divergem no como chegar lá: quais as políticas específicas que devem ser promovidas para melhorar a vida dos cidadãos. O que fazer para melhorar a educação? E a saúde? Como resolver o problema dos transportes? Alckmin e Haddad divergem também na prioridade que conferem a cada uma destas políticas, afinal os recursos são finitos.
Muito do que está por ocorrer dependerá das respostas dadas aos manifestantes pelos governantes. Como disse Dilma: as ruas foram ouvidas. Mas o que as ruas disseram? A voz das ruas precisa ser interpretada e decodificada, traduzida em uma hierarquia de prioridades e de políticas específicas.
O despreparo dos governantes foi - e continua sendo até o momento - completo. Entraram em parafuso para não dizer pânico. Uns porque habituados a ter estes movimentos contra si, outros porque sempre se valeram destes movimentos para pressionar os governantes. As posições, contudo, se inverteram. Diante da situação, o PSDB não soube como se comportar na oposição e o PT como governo.
Em meio a este descontrole, cada um desenterra do baú sua reforma preferida e passa a vendê-la como a solução para todos os males presentes, reais e imaginários. A reforma política, pouco mencionada pelos cartazes trazidos à rua, voltou à agenda. Em pesquisa de opinião, não mais do que 1% dos manifestantes em São Paulo a citaram como uma de suas razões para ir às ruas. Não importa. Interessa aproveitar a oportunidade e aprovar reformas. O PSDB desenterra o voto distrital misto e o PT o financiamento público de campanhas.
Recomenda-se prudência. Vale lembrar que já há financiamento público do item mais caro das campanhas políticas, o acesso à TV. O que os partidos políticos brasileiros recebem de graça é o sonho de consumos dos partidos pelo mundo. Se obtiverem mais recursos públicos para custear suas atividades, os partidos poderão manter uma distância olímpica da sociedade. Se esta distância era o problema, então as coisas só vão piorar. O grande favorecido será o partido no poder, uma vez que, necessariamente, é o que recebeu mais votos na eleição passada e a distribuição de recursos é proporcional ao desempenho.
As velhas propostas recebem tinturas populares. Métodos e recursos aparentados à democracia direta, como plebiscitos, referendos e recalls são invocados como mais legítimos. O povo dará o veredicto. A vontade popular se manifestará de forma bruta, sem intermediários, direta e reta. A presunção que alimenta tais esperanças é a de que a vontade popular existe, está lá, pronta e acabada, só precisa ser consultada para se revelar. Esta presunção é simplesmente falsa. A vontade do povo precisa ser formada e difundir informação custa dinheiro. Plebiscitos, referendos e recalls são precedidos de campanhas. O poder econômico sabe muito bem como explorar a seu favor estes mecanismos. Alguém se lembra como Arnold Schwarzenegger chegou ao governo da Califórnia? Pois é, o inferno está cheio de boas intenções e repleto de ingênuos.
O descompasso entre o método e o objetivo não poderia ser mais completo. Não é fácil entender como as minúcias da legislação eleitoral serão transpostas para as opções binárias próprias a plebiscitos. Ainda mais quando o diabo mora no detalhe. O voto distrital misto pode ser operacionalizado de inúmeras maneiras. Como colocar estas opções em um plebiscito? O mesmo se aplica ao financiamento público de campanha. Qualquer que sejam as alternativas aprovadas em um plebiscito, caberá aos políticos - ou quem quer que venha a receber este mandato - definir os detalhes. E o fato é que não há qualquer certeza nesta matéria. Não há um modelo pronto para ser copiado. E mesmo que o problema estivesse no sistema político, seus efeitos serão de longa maturação. Na melhor das hipóteses, as reformas se aplicariam à eleição de 2014.
Vale aqui o velho ditado: cuidado com o andor que o santo é de barro. Na realidade, o santo sendo carregado não é assim tão mal. Nem "tudo que está aí" pede reforma ou mudança. O problema, por certo, não está nas leis eleitorais. Por que não discutir as politicas de educação, de saúde e de transporte?
Fernando Limongi é professor titular do departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.
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