domingo, 25 de novembro de 2007

O caso Grootboom e o controle judicial "intermediário"

Como tive oportunidade de ressaltar no comentário ao último post, uma das questões subjacentes (assim entendo) à idéia de controle judicial "fraco" ou "forte" é a constitucionalização dos direitos sociais. Por certo, poucos acadêmicos norte-americanos teriam coragem de levantar a idéia de "não-justiciablidade" da 1ª Emenda, algo próximo de uma religião para os constitucionalistas daque país. Quanto aos direitos sociais, porém, tanto conservadores quanto progressistas têm receio em entregar à Suprema Corte a tarefa de definir a extensão dos deveres do Estado na prestação dessas garantias.

Para enriquecer essse debate, trago à discussão a jurisprudência da Corte Sul-Africana, e em especial o caso Grootboom, altamente elogiado por Sustein como uma forma intermediária de judicialização das políticas públicas.

Algumas semelhanças ligam o Brasil à África do Sul. Assim como o nosso país, aquela república africana possui uma Constituição recentemente estabelecida (sua nova Constituição é de 1996), baseada no princípio democrático e na dignidade humana, e com supremacia sobre o ordenamento jurídico. A Constituição sul-africana possui um catálogo de direitos (Bill of Rights) que inclui não somente as clássicas liberdades civis e políticas, mas também direitos econômicos, sociais e culturais, que podem ser aplicados diretamente pelo Judiciário. É importante observar que, ao enumerar esses direitos sociais, a Constituição sul-africana os associa à reserva do possível, afirmando que o Estado deve tomar “razoáveis” medidas legislativas e outras medidas que promovam a “progressiva realização” desses direitos, “na medida dos recursos disponíveis”.

Além da semelhança entre as propostas constitucionais, Brasil e África do Sul compartilham uma realidade social nada invejável, marcada pela profunda desigualdade. A África do Sul, após anos sob o regime do apartheid, encontrava-se com enorme contingente populacional na linha da pobreza ou abaixo desta. Mesmo após anos do término do regime discriminatório e da implementação da nova e progressista Constituição, a África do Sul continuava entre as nações com maior desigualdade social do mundo, e o motivo era bem simples: o Estado simplesmente não tinha recursos para atender a todas as necessidades da população.

Nesse contexto, englobando, de um lado, a existência de uma Constituição consagradora de direitos prestacionais dotados de justiciabilidade, e, de outro, uma extensa parcela da população ainda padecendo das mazelas da pobreza, não seria estranho que alguns casos chegassem à Corte Constitucional daquele país. Desses, um dos que tem sido destacados como paradigma da intervenção estatal nas políticas públicas é o caso Government of Republic of South Africa and others v Grootboom and others, que já encontra razoável repercussão na doutrina jurídica.

A questão básica em Grootboom era o direito a uma residência adequada, previsto no art. 26 da Constituição sul-africana. A senhora Grootboom e outros autores moravam em acampamentos informais em uma região sujeita a alagamentos. Muitos deles se candidataram a programas governamentais de habitação popular, mas esperavam na lista há algum tempo e não tinham previsão de disponibilidade de residências. Com a proximidade da estação das chuvas, mudaram-se para um terreno com maior drenagem que, todavia, pertencia a um particular. Despejados judicialmente, tentaram voltar para o antigo acampamento, mas este já se encontrava ocupado por outras pessoas. Moveram, então, uma ação perante a High Court sul-africana, a qual não entendeu haver violação do art. 26 da Constituição, mas sim violação do art. 28, que confere às crianças o direito a um abrigo, dentre outros. Dessa forma, a High Court determinou o imediato atendimento da pretensão dos autores, determinando ao governo prover refúgio às famílias com crianças, fixando ainda condições mínimas como a existência de sanitários e fornecimento regular de água.

O governo recorreu então à Corte Constitucional, alegando questões ligadas à reserva do possível, firmando-se no precedente estabelecido no caso Sobramoney. O ponto central em Grootboom era estabelecer o alcance das “medidas razoáveis” impostas pela Constituição. A Corte fixou que a razoabilidade constitucional requeria que um programa implementado para a realização de direitos socioeconômicos deveria ser abrangente, coerente, equilibrado e flexível, insistindo que um programa que exclui parcela relevante da sociedade não poderia ser assim considerado. Dessa forma, o programa governamental de habitação não poderia ser considerado válido na medida em que falhou ao prover as necessidades de pessoas em imediata e desesperada necessidade, devendo ser modificado para atender a essas pessoas, mesmo em prejuízo de objetivos de longo prazo ou da construção de residências permanentes. A Corte, então, determinou que parcela razoável do orçamento para moradia fosse alocada para atender aquela situação emergencial, não aceitando, porém, a solução adotada pela High Court.

Em Grootboom, a Corte Constitucional não rejeitou completamente o programa governamental de habitação, chegando a afirmar que a quantidade de recursos a ele destinada era substancial. O problema, como já destacamos, é que ele falhava quanto à demanda das pessoas urgentemente necessitadas. Mas para resolver esse problema, a Corte evitou determinar quais prestações eram devidas e como deveriam ser fornecidas, preferindo apenas intervir através da realocação de recursos no orçamento da habitação, deixando, todavia, que a implementação específica ficasse a cargo das autoridades administrativas, a quem em primeira instância incumbe tratar dessas questões.

Outro ponto interessante é que, para a fiscalização do cumprimento da decisão, a Corte nomeou um órgão independente, no caso a Comissão de Direitos Humanos. Como medidas de implementação de direitos prestacionais não se esgotam em único ato, exigindo uma contínua relação do Judiciário com a instituição controlada, essa estratégia da Corte Constitucional sul-africana parece uma boa opção para evitar a personificação do processo e a perda da imparcialidade judicial, observadas por Owen Fiss na experiência com a structural injunction norte-americana.

Como Sunstein ressalta, a Corte em Grootboom teve o mérito de trilhar um caminho intermediário entre as duas posições diametralmente opostas, que normalmente são apresentadas para a solução de casos envolvendo direitos socioeconômicos: ou bem esses direitos são colocados como não justiciáveis; ou bem eles são vistos como fonte de dever absoluto para o Estado, para assegurar proteção a todos aqueles que necessitam dessas prestações. Em Grootboom, a Corte impôs o direito constitucional à habitação ao governo não de forma a garantir que todos recebam abrigo, mas determinando que sejam alocados mais recursos do que ordinariamente seriam destinados ao problema da insuficiência de residências para os pobres, notadamente exigindo a manutenção de um plano para atender pessoas em situação de emergência.

Certas críticas foram dirigidas à decisão em Grootboom, notadamente quanto ao não reconhecimento de um núcleo básico dos direitos sociais constitucionais, exigível de forma direta e individual, mas, como disse Sunstein, a solução adotada pela Corte Constitucional sul-africana permitiu a possibilidade de prover proteção judicial a certas prestações sociais ligadas ao mínimo existencial em um modo que respeita as prerrogativas democráticas e o fato de existirem limitações orçamentárias. Em Grootboom, garantiu-se respeito às prioridades constitucionais e especial atenção a necessidades particulares sem menosprezar os julgamentos democráticos sobre como definir essas prioridades. Enfim, ao exigir o estabelecimento de programas razoáveis, com cuidadosa atenção às limitações orçamentárias, a Corte assentou a possibilidade de prestações estatais serem justiciáveis sem que se menospreze a reserva do possível.

sábado, 24 de novembro de 2007

O modelo canadense e a consituição

O jornal O Valor de 22 de novembro de 2007 publica importante artigo sob o título "Decisões recentes da Suprema Corte" da Presidente da Suprema Corte do Canadá. Além de delimitar pontos comuns institucionais entre o Canadá e o Brasil, como é o caso de nossos dois países ter adotado o sistema federativo, a leitura do citado texto é bastante valiosa como subsídio informativo para o nosso atual debate a respeito da judicialização da politica. Pois, estamos testemunhando, nessa atual quadra histórica política brasileira, um fortalecimento imenusurado do Supremo Tribunal Federal. A autora do referido artigo relata duas experiências resultantes de decisões da Suprema Corte do Canadá. Uma é a respeito do caso Charkoui no qual foi considerado inconstitucional o sistema canadense de certificados de segurança. Tal fato decorreria porque fere direito à liberdade e à garantia de segurança do individuo protegidas pela Carta Canadense de Direitos e Liberdades. Foi decidido que o parlamento canadense tem o prazo de uma ano para reformar a citada lei. O artigo reportado por nós acentua: "Embora a Suprema Corte tenha decidido que a lei era inconstitucional, é uma prerrogativa do Parlamento , formado por representantes eleitos, ajustar a legislação para fazê-la obedece à Constituição". O outro caso destacado é "Chaou/li v Quebec". Trata-se de decisão em virtude da frequente morosidade na autorização de procedimentos cirúrgicos por parte do serviço de saúde pública canadense. A Corte em exame decidiu ser inconstitucional as legislações provinciais que proibia o cidadão ter seguro privado de saúde para serviços cobertos pelo sistema financiado pelo poder público. Apesar das críticas e incompreensões a respeito do julgado por estar, supostamente, favorecendo a privatização do serviço de saúde. Na verdade , a Suprema Corte Canadá garantiu foi uma flexibilização do serviço de saúde pública para torna-lo mais adequado no atendimento de casos médico-cirúrgico onde há mais demora na sua solução. Dessa forma, o legislativo da Provincia de Quebec aprovou legislação indicando em que procedimentos cirúgicos poderia haver atuação de serviço privado. Com esses casos relatados, a Presidente da Suprema Corte do Canadá Beverley McLachlin elogia essas articulações politicas e institucionais com os poderes do Estado no Canadá. Vale observar, ainda, que esse denominado modelo canadense de constrole de constitucionalidade nos remete para o famoso debate travado entre Mark Tushnet, Lawrence Tribe e Jeremy Waldron editado na revista eletrônica Dissent do verão e primavera de 2005 (www.dissentmagazine.org). Tushnet abre o debate de forma radical propondo uma emenda constitucional nos Estados Unidos vedando qualquer juiz norte-americano pronunciar-se a respeito de matéria de constitucionalidade. Esse constitucionalista americano defende que tal missão institucional caberia ao Legislativo. Relata, mas não está de acordo, com a experiência canadense de "weak judicial review" no qual, como demonstra o texto publicado pelo jornal O Valor, há uma cooperação entre o Judiciário e o Legislativo. Jeremy Waldron responde que a proposta de Tushnet de acabar com o judicial review é tentadora. Ele está realmente seduzida por ela. Contudo, ele opta pela experiência britânica em que um juiz diante de uma matéria inconstitucional pode apenas apresentar uma "declaração de incompatibilidade". Cabe, assim, a Câmara dos Lordes a tarefa final do questionamento de inconstitucionalidade. Tushnet rebate esse argumento lembrando que tanto no Canadá como na Austrália o denominado "weak judicial review" não funcionam de forma adequada. Diante de todo esse contexto argumentativo, haveria um procedimento de inconstitucionalidade rigorosamente perfeito e democráticamente de forma institucional? Ou a solução não seria de modo incessante buscar um aperfeiçoamento no qual, por exemplo em relação ao Brasil, mantivesse não só o sistema difuso como também em termos de Supremo Tribunal Federal alargar mais as experiências de "amicus curiae" decorrente do artigo 7º,§ 2º da Lei n º 9868/99?

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

O paradigma de Denninger na jurisprudência do STF

Erhard Denninger (Diritti Dell´uomo e Legge Fondamentale, Torino: Giappichelli) evoca a insurgência de uma nova visão constitucional baseada na segurança, diversidade e solidariedade, em substituição à tríade tradicional da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Segundo Denninger esse novo paradigma surge como sendo a idéia central e a força propulsora por trás de muitos debates recentes sobre reforma constitucional nos Länder alemães.

A passagem da igualdade para diversidade ocorre em função de um novo ideal constitucional que deixa de ser direcionado à síntese de um todo universal para a coexistência de uma pluralidade de identidades étnicas, culturais e lingüísticas visando a proteção de minorias e dispositivos sustentando interesses minoritários, frequentemente incompatíveis.

Esse desejo por diversidade é compensado no principio da solidariedade, que “não é usado apenas para decorar preâmbulos”, mas que ganhou expressão em dispositivos constitucionais suplementares e protetivos. Inobstante reconhecer Denninger que a substancia jurídica e ética da solidariedade permanece indeterminada, a seu ver, solidariedade significa uma vínculo de sentimento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado que nos compele a oferecer ajuda, enquanto se apóia na similitude de certos interesses e objetivos de forma a, não obstante, manter a diferença entre os parceiros na solidariedade. Significa também, em termos jurídicos, uma rejeição do caráter vinculante de sistemas de valor universais, e a renúncia da exigência de ser igual ao outro tanto em posse quanto em consciência. Segundo Denninger, “o caráter vinculante geral de uma postura solidária repousa no conhecimento da subjetividade relativa de toda experiência de valor e na renúncia ao desejo de forçar os outros a serem felizes”. Antes e acima de tudo, a solidariedade também exige uma constante transcendência dos próprios pequenos preconceitos nascidos de um etnocentrismo primitivo.

Já a segurança não possui mais o mesmo significado que lhe emprestou a Revolução Francesa e o Estado de Direito formal, ou seja, de uma segurança garantida pelo direito, de viver pacificamente, sem armas, sem violência, e no sentido jurídico do termo, a ação limitada e calculável da ação do Estado e a certeza do direito fundada na sua clara e inequívoca cognição. Segurança significa agora o prospecto da atividade ilimitada e infindável patrocinada pelo Estado em favor da proteção dos cidadãos contra perigos sociais, técnicos e ambientais. Isto deve ser reconhecido como a face do “estado preventivo” (sobre essa noção, consulte-se por todos, Dieter Grimm, Constitucionalismo y derechos fundamentales, Madrid: Trotta, 2006). O estado de prevenção de Denninger é inspirado pela máxima segurança, de cuja evolução decorre duas conseqüências: o direito fundamental como dever positivo de proteção do estado; o direito fundamental à segurança.

Esse novo paradigma de Denninger, ainda que passível de crítica no contexto de outros sistemas jurídicos constitucionais (consulte-se Michel Rosenfeld, O Constitucionalismo americano confronta o novo paradigma constitucional de Denninger, Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 88, dez/2003) tem encontrado na jurisprudência do STF um reconhecimento implícito, como por exemplo, no HC 83.554-6/PR, em que o Relator Min. Gilmar Mendes refere o problema da sociedade de risco nos atos lesivos ao meio ambiente, bem como na discussão sobre o caráter solidário e contributivo do regime de previdência dos servidores públicos (ADI 3105/DF e ADI 3128/DF).

sábado, 17 de novembro de 2007

As contradiçoes do Supremo Tribunal Federal

Na sessão plenária do STF do dia 14 de novembro de 2007. procedeu-se ao exame da Medida Cautelar da ADI nº 3976 ingressa pela Procuradoria Geral da República contra a Presidência do TJ-SP e a Assembléia Legislativa do Estado de S. Paulo. No dia 5 de dezembro de 2007, o TJ-SP elegerá o seu novo presidente seguindo mudanças do seu Regimento Interno e da própria Constituição do Estado de São Paulo seguindo aliás as orientações da própria Emenda Constitucional nº 45/04. Orientações, cabe ressaltar, no sentido de relativizarem o peso da composição do orgão especial na eleição da presidência do citado tribunal. O atual presidente do TJ-SP foi eleito por meio desse procedimento. O voto vencedor favorável a medida cautelar com "temor do excesso de democracia" é de um ex-desembargador do TJ-SP Ministro Peluso. O Ministro Ayres Brito vota contra a concessão da cautelar lembrando que deve prevalecer o princípio do auto-governo do Poder Judiciário estadual. O Ministro Gilmar Ferreira Mendes lembra o seu interesse no estudo da jurisdição constitucional. Sublinha que esse ente tem uma antinomia porque ao mesmo tempo controla a maioria e protege a democracia. Destaca o pensamento de Lawrence Tribe no sentido de ser o contitucionalismo uma matriz por natureza não democrática. Esquece o Ministro Gilmar Ferreira Mendes que é da "lógica" do sistema constitucional americano essa contradição. Na verdade, ao transpor Tribe para justificar uma posição do STF limitadora na democratização da Justiça Estadual, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes procede com as "idéias fora do lugar" (veja Roberto Schwarcz apesar de que para nós as "idéias não estão fora do lugar", elas têm funcionalidade!). Por fim, o decano do STF o Ministro Celso de Mello procede um histórico. Lembra que a Loman vem de "um entulho democrático". Pontua que em 1992 o STF elaborou um projeto do Estatuto da Magistratura mas que acabou sendo retirado. Num lampejo de vocação democrática, destaca que o citado projeto era democrático porque permitia, como quer o Ministro Ayres de Brito, o reconhecimento do auto-governo dos TJs. Contudo, adverte Celso de Mello que, mesmo no referido projeto, já era premonitório. Por que? O auto-governo deveria ser limitado diante das especificidades se o Tribunal Justiça tivesse um grande número de desembargadores. Tal ocorreu com o TJ-SP com a extinção do seu Tribunal de Justiça. Sublinha que o STF não pode atuar de forma "tópica e regional" ao reconhecer o Regimento Interno do TJ-SP e da Constituição Estadual. Pois, há a reserva da lei prevista no artigo 93 da CF de 88 e esta será de iniciativa do STF. Frisa por várias vezes que é a iniciativa do STF. Mesmo diante das orientações da Emenda Constitucional nº 45/04, ainda prevalece o artigo 102 da Loman para disciplinar a eleição das presidências dos TJs. Os precedentes do STF mesmo antes e depois da referida emenda constitucional têm acentuado essa linha. Ministro Eros Grau lembra que não estamos frente a uma mutação constitucional, sim de uma interpretação. Voltando a Celso de Mello, com base nessas fundamentações históricas e institucionais, acompanha o voto do Ministro Peluso. Com esse quadro, uma pergunta não quer calar, onde está o "ativismo" do STF. Onde está "a vontade de legislador" da nossa Corte Maior?

A obviedade do neoconstitucionalismo

A palestra de Miguel Carbonell no II Congresso de Direitos Sociais promovido pela Procuradoria Geral do Municipio do Rio de Janeiro ocorrido entre os dias 12 e 14 de novembro passado merece uma reflexão crítica. O próprio Carbonell reconhece que o neoconstitcuionalismo esteja se transformando em uma "etiqueta". Aponta que o neoconstitcuinalismo é uma denominação tendo como origem o Instituto Tarello em Genova integrados por Guastini, Possolo entre outros. Teme o destino do neoconstitucionalismo acabar com o mesmo rumo dado ao garantismo de Ferrajoli. Carbonell reconhece que o neoconstitucionalismo se refere aos textos constitucionais pós-45. Excetua o texto da constituição bolivariana de 1999 na Venezuela. Refuta os críticos de que haveria um neoconstitucionalismo anteriores de 45 como a experiência americana no caso Marbury ou os trabalhos de Kelsen. O neoconstitucionalismo, segundo constitucionalista mexicano, é de fato pós-Segunda Guerra Mundial diante de um conjunto paradigmático como principios, razoabilidade, efeitos vinculantes. O neoconstitucionalismo aponta para um ativismo progressista ou um conservador. Reforça que estariamos diante de uma nova Teoria do Direito com o carater do "deve ser" ou de "metagarantia". Carbonell vem nos dizer que estamos diante de um Estado Neoconstitucional progressista. Voltando a teoria do direito, vem para denunciar as "lacunas", "antinomias". Olhando pelo retrovisor de seu carro teórico cita Carbonell os postulados analiticos de Dworkin, Alexy, Nino e Sanchis. Pontua, ainda, no Estado neoconstitucional as vias coletivas. Que concluimos dessa vinda de Carbonell ao Brasil? Creio que a maior a contribuição foi de reforçar uma sistematização de discussões teóricas que já era de nosso domínio. Entretanto, deparamos com determinados perigos. Por exemplo, essa visão abstrata de Estado neoconstitucional. É uma perspectiva idealizada hegeliana superadora de contradições sociais. O neoconstitucionalismo está distante do processo histórico. O novo paradigma conclamado por Carbonell não se articula com um quadro democrático e com as forças políticas. Acredita que, com base em dispositivos como a do artigo 9.2 da Constituição Espanhola de 1978, ser uma tarefa do Poder Público remover os obstáculos para efetivar a igualdade social. Concluímos que, mesmo com essas melhores intenções, não é através desse mundo sintese hegeliano do neoconstitucionalismo, permitirá a nós compreender o papel da constituição. Está só será delimitada na medida em que não deixemos de integra-la ao processo histórico com suas forças sociais contraditórias. Carbonell passa a nós um congelamento da estrutura social em que um Estado neoconstitucional e com suas ações judiciais coletivas levarão a todos ao paraíso. Ribas

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Billy Budd e as Decisões Consequencialistas


Neste post, comentamos um artigo publicado pelo Prof. Daniel Solove na Cardozo Law Review (http://ssrn.com/abstract=587121), procurando estabelecer uma comparação com as chamadas decisões consequencialistas tomadas pelo nosso Supremo Tribunal. Concordando com o Prof. da GWU, entendemos que a obra de Melville (Billy Budd) nos convida a examinar com mais detalhes as justificativas apresentadas pelos governantes para excepcionar as regras legais em situações de emergência.


Billy Budd, personagem de Herman Melville, era um marinheiro da armada inglesa durante as guerras napoleônicas. Acusado de ser um potencial conspirador, Billy Budd mata acidentalmente um oficial e é levado a julgamento por uma comissão de oficiais e marinheiros, presidida pelo comandante do navio, capitão Vere. Apesar de alguns integrantes da comissão entenderem que o crime não foi intencional, Vere argumenta que, em tempo de guerra, o homicídio deveria ser punido com a morte, independentemente da intenção do agente. Assim, Billy Budd acaba sendo condenado e enforcado no mastro principal.

Mas o que a história do marinheiro Billy Budd tem a ver com o Direito e, principalmente, com as decisões do nosso Supremo Tribunal?

A obra de Melville serve de matéria-prima para um interessante artigo do Prof. Daniel Solove. Por trás da história de Billy Budd, aparenta existir um velho dilema que de tempos em tempos ressurge no Direito. Em certos casos excepcionais, o que deve prevalecer: a justiça ou o direito estabelecido? As normas devem ser flexibilizadas em prol da justiça ou esta deve ser sacrificada para assegurar um bem maior? Solove, no entanto, vai além dessa questão. Baseado na interpretação que Weisberg fez da obra de Melville, o professor da GWU aponta que, de fato, o capitão Vere falha na aplicação do regra de direito. Por conta de uma série de vícios procedimentais – além do fato de Vere ter sido ao mesmo tempo a principal testemunha e condutor do julgamento – o processo é erroneamente acelerado, resultando na indevida execução de Billy Budd.

A execução de Billy Budd ultrapassa o simples debate utilitarista ou o problema do legalismo exagerado. O marinheiro é executado não porque representa em si uma ameaça, mas pela imagem que sua absolvição representaria perante o resto da tripulação. A execução de Billy Budd, conclui Solove, “tem a qualidade de um sacrifício ritual”; é feita em nome das aparências.

Solove procura chamar a atenção para as semelhanças entre o julgamento de Billy Budd e o argumento da emergência, que não raro leva governos e tribunais a tomarem ações precipitadas, que não raro são compreendidas como equivocadas no futuro. Assim, por exemplo, no caso da internação forçada dos nipo-descendentes durante a II Guerra Mundial, que foi sancionada pela Suprema Corte Americana no caso Korematsu v. United States, e, recentemente, nos atos anti-terroristas editados após o ataque de 11 de setembro. A história de Billy Budd , conclui Solove, pode ser lida como uma poderosa demonstração do porquê devemos resistir à tendência de prontamente aceitar argumentos de nossos líderes no sentido de que devemos fazer certos sacrifícios em tempos de crise. Pra o autor, “o direito é frequentemente comprometido ou manipulado para legitimar sacrifícios severos em tempos de crise, os quais frequentemente são desnecessários”.

Em nosso Supremo Tribunal, a emergência figura no discurso jurídico através dos argumentos consequencialistas. No Brasil, ao contrário dos EUA, guerra e terrorismo não são ameaças atuais na agenda governamental, mas isso não quer dizer que estejamos a salvo das situações de emergência. Na história recente, as situações de emergência têm surgido no campo econômico. Na visão governamental, as políticas econômicas e fiscais precisavam ficar “protegidas” do direito, o que resultou em uma considerável expansão das medidas de Suspensão de Segurança, especialmente com base na legislação introduzida na virada da década, atualmente corporificada na MP 2.180 de 2001.

A Suspensão de Segurança é um mecanismo que merece maior atenção porque ele não bloqueia uma decisão judicial por conta de um erro in procedendo ou in judicando. Diferentemente dos recursos, a Suspensão de Segurança tem por objeto apenas as possíveis consequências da decisão, e não seu conteúdo. Ela é concedida “para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas” (art. 4º da Lei nº 8.437/1992). Não há, na Suspensão de Segurança, espaço para contraditório ou produção de provas. O julgamento é feito com base nas aparências apresentadas. Da mesma forma, a Suspensão não tem por objetivo manter a integridade do direito, mas evitar que se produzam as consequências indicadas pelas aparências.

Os exemplos de Suspensão de Segurança são muitos, mas vamos nos deter no caso da SS nº 3.154-6/RS. Nesse procedimento, o Estado do RS procurou suspender a execução de liminar deferida contra o parcelamento do pagamento de funcionários públicos. A liminar do Tribunal de Justiça estava baseada no art. 35 da Constituição estadual, que fixa data certa para o pagamento dos servidores públicos, o que tornava o caso ainda mais interessante, porque o próprio STF já havia afirmado a constitucionalidade daquela norma em uma ação direta de inconstitucionalidade. Não obstante, a suspensão foi deferida pelo Vice-Presidente da Corte, “tendo em vista a situação excepcional em que se encontram as contas públicas estaduais”.

A SS nº 3.154-6/RS traz um perfeito exemplo de julgamento consequencialista. A decisão judicial atacada não merecia reparos do ponto de vista jurídico, pois foi a aplicação de uma regra constitucional, semanticamente simples e de perfeito enquadramento ao caso concreto. O fundamento para a suspensão residia unicamente nos efeitos daquela decisão na ordem econômica do Estado.

Não há como, neste momento, adentrarmos no mérito da SS nº 3.154-6/RS. Nem nos parece incorreto, a princípio, considerar que as consequências devam exercer algum papel na argumentação desenvolvida perante os tribunais. O ponto crítico, em nossa opinião, é saber até que ponto podemos confiar nas aparências apresentadas pelo Estado para criar exceções à garantias dos direitos.

Até o presente momento, a grande maioria das exceções tem sido construída em detrimento dos direitos individuais que se refletem na órbita patrimonial. Não podemos nos esquecer, contudo, que uma onda de exceções também vem sendo criada em torno da questão da segurança pública. Será que, em nome da segurança pública, os direitos individuais dos moradores de comunidades carentes podem ser sacrificados? O combate à criminalidade justifica a flexibilização dos sigilos das comunicações? Pelo que parece, a história de Billy Budd também tem algumas lições a nos ensinar.

domingo, 11 de novembro de 2007

A omissão legislativa e a responsabilização do Estado

A Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça vem patrocinando estudos dentro do denominado "Dossiê da Justiça" para viabilizar o "Observatório da Justiça Brasileira" envolvendo pesquisadores de determinadas universidades brasileiras. Uma das varíáveis articuladores desse citado projeto é o tema do acesso à justiça. Nota-se que há uma certa dificuldade como enquadrariamos a presença do Supremo Tribunal Federal nesse entendimento de acesso à justiça. A proposta prevalecente seria de que o Supremo Tribunal Federal está vinculado sim as questões do acesso à justiça na medida em que há ou não uma abertura para a participação da sociedade civil nos seus julgamentos. Dessa informa, instiga a refletir por que a nossa Jusridição Constitucional se abre para a presença de segmentos de nossa sociedade na audiência pública ocorrida no primeiro semestre de 2007 sobre os embriões, por exemplo, e tal procedimento não houve no caso do julgamento dos mandados de segurança sobre a infidelidade partidária?. Aproveitamos a oportunidade em fazer circular o resumo do trabalho pesquisa para a conclusão do curso de graduação em Direito da "Universidade Federal Fluminense "de Bernardo Reis. Nesse estudo, o autor discute a responsabilização material do Estabo brasileiro diante do não cumprimento do nosso ordenamento jurídico em todos os seus níveis a respeito do reajuste dos servidores públicos. A pesquisa é relevante porque aponta para um outro aspecto do acesso à justiça que não se reduz a participação da sociedade e sim também a concretização de direitos. Por fim, a leitura do texto abaixo é relevante porque adensa mais o debate do sobre a omissão legislativa e o sentido da separação de poderes hoje entre nós. E mais ainda, o Judiciário no caso relatado por Bernardo Reis estaria atuando ou não como legislador,questionamos. Eis o texto para a leitura e questionamento:

Desde a entrada em vigor da atual Constituição Federal até o ano de 1995, o Governo Federal, por intermédio de diplomas legais diversos, garantia aos servidores da União, no mínimo, a revisão geral anual de suas remunerações, implementada sistematicamente no mês de janeiro de cada ano. Entretanto, a partir do mês de janeiro de 1995, cessaram tais revisões, fato este que acarretou uma significativa defasagem salarial para a categoria.
A Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, buscou reparar tal situação e, entre outras modificações, alterou o teor do inciso X, do artigo 37, da Constituição Federal, inserindo a obrigatoriedade de revisão geral anual da remuneração dos servidores da União, determinando, ainda, segundo o entendimento majoritário, que esta fosse fixada ou alterada por lei específica, observada a competência privativa em cada caso, verbis:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
X - a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998);” (grifo nosso)

Com essa alteração, a obrigatoriedade de revisar anualmente os vencimentos dos servidores da União ganhou hierarquia Constitucional, uma vez que expressamente assegurou ao servidor público o “princípio da periodicidade”, ou seja, garantiu anualmente ao funcionalismo público, no mínimo, uma revisão geral, diferentemente da redação anterior do citado inciso X, do art. 37, que estipulava que “a revisão geral da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares far-se-á sempre na mesma data”, garantindo-se, tão somente, a simultaneidade de revisão, mas não a periodicidade.[1]
Em virtude da redação anterior, entendia o Supremo Tribunal Federal que inexistia obrigatoriedade de envio do projeto de lei pelo Presidente da República, detentor de iniciativa privativa de leis que disponham sobre aumento da remuneração dos servidores públicos (CF, art. 61, § 1º, II, “a”), justamente em face da ausência do princípio da periodicidade para revisão do funcionalismo. Com a nova redação, obviamente, a obrigatoriedade do envio de pelo menos um projeto de lei anual, tratando da reposição do poder aquisitivo do subsídio do servidor público, deriva do próprio texto constitucional.
Porém, apesar da iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, o Sr. Presidente da República continuou inerte no tocante à matéria, ignorando o novo preceito constitucional. Tal inércia viria a ser sanada somente com o advento da Lei nº 10.331/2001, a qual regulamentou o artigo 37, X, da Constituição Federal, isto é, dispôs sobre a revisão geral e anual da remuneração e subsídio dos servidores públicos federais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, das Autarquias e Fundações Públicas Federais.
Ocorre que, durante o inegável e representativo lapso temporal existente entre o advento da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, e a posterior regulamentação pela Lei nº 10.331, de 2001, os servidores que seriam beneficiados por tais revisões viram seu direito constitucionalmente garantido ser desrespeitado, fato este que lhes gerou considerável prejuízo financeiro.
Desta forma, buscaram, através de associações ou de iniciativas individuais, a tutela jurisdicional do Estado-juiz, ingressando com inúmeras ações objetivando, através de indenizações por danos morais e materiais, a recomposição das perdas que sofreram em decorrência do descaso do poder público.
O presente trabalho busca, através de estudos de nosso ordenamento jurídico, da doutrina pátria especializada e da jurisprudência dos Tribunais responsáveis pelo julgamento de tal matéria, analisar o posicionamento da comunidade jurídica nacional diante de tais ações. É nossa intenção, portanto, observar como os aplicadores do Direito se colocam diante de um tema ainda pouco desenvolvido por nossos juristas que seria a responsabilidade civil do Estado diante de omissão legislativa por parte do poder público, focados, principalmente, sobre a temática da revisão geral anual dos servidores públicos.



Assim, a Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, entre outras modificações, alterou o teor do inciso X, do artigo 37, da Constituição da República, inserindo a obrigatoriedade de revisão geral anual da remuneração dos servidores da União, determinando, ainda, segundo o entendimento majoritário, que esta fosse fixada ou alterada por lei específica, observada a competência privativa em cada caso.
Ocorre que, durante o inegável e representativo lapso temporal existente entre o advento da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, e a posterior regulamentação pela Lei nº 10.331, de 2001, os servidores que seriam beneficiados por tais revisões viram seu direito constitucionalmente garantido ser desrespeitado, fato este que lhes gerou considerável prejuízo financeiro.
Nessa linha de raciocínio, nesta pesquisa, buscamos analisar o posicionamento da comunidade jurídica nacional diante de um tema ainda pouco desenvolvido por nossos juristas que seria a responsabilidade civil do Estado diante de omissão legislativa por parte do poder público, focados, principalmente, sobre a temática da revisão geral anual dos servidores públicos.
Inicialmente, traçamos uma sintética análise sobre a evolução da responsabilidade civil do Estado no Direito brasileiro. Em breves linhas, restaram demonstradas as diversas alterações operadas no ordenamento jurídico pátrio, as quais culminaram no modelo atual, onde se verifica que, nos dispositivos constitucional e legal em vigor, estão compreendidas duas regras: a da responsabilidade objetiva do Estado e a da responsabilidade subjetiva do funcionário, em regra, em ação regressiva.
Ademais, adentrando especificamente a questão da responsabilidade civil do Estado por omissão legislativa, foi indagado se a ausência de produção legislativa poderia gerar a responsabilização civil do Estado. Tal questionamento foi positivamente respondido, sendo certo que, em casos de omissão própria, ou seja, quando existe um dever jurídico de produzir a lei, como ocorre, por exemplo, no dispositivo constitucional ora analisado, a omissão representará uma infração à ordem jurídica, gerando obrigação de indenizar.
Neste sentido, foram apresentados precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Corte das Comunidades Européias, afirmando a possibilidade de a omissão legislativa acarretar a responsabilidade patrimonial do Estado.
Prosseguindo a construção textual, buscou-se demonstrar o verdadeiro conteúdo da revisão geral anual dos servidores públicos. Após discussão sobre as principais controvérsias que circundam o tema, conceituamos a revisão geral anual dos servidores públicos como um instituto constitucionalmente previsto, o qual atua como verdadeira correção monetária, restabelecendo o status quo ante, através da recomposição das perdas inflacionárias. Tal instituto requer lei específica, a ser desencadeada anualmente pelo Presidente da República, e prévia dotação orçamentária, atingindo a todos os servidores indistintamente e recompondo o valor real dos respectivos vencimentos.
Invadindo o tema propriamente dito, observou-se intensa divergência jurisprudencial acerca do cabimento do pleito indenizatório a título de danos materiais. Nos posicionamos favoravelmente a tal pretensão, tendo em vista a presença dos elementos nucleares da responsabilidade civil, quais sejam, conduta (omissiva, no caso em tela), dano e nexo de causalidade. Além disto, tal entendimento se encontra respaldado por ideais basilares da ciência jurídica, como a busca pela efetividade constitucional e a vedação ao enriquecimento sem causa.
Cumpre observar que, na presente hipótese, o Judiciário não estaria substituindo a função do legislador, nem tampouco usurpando a competência exclusiva do Presidente da República para iniciar o processo legislativo referente ao aumento da remuneração dos servidores públicos. Simplesmente, estaria este cuidando de apreciar lesão causada ao poder aquisitivo dos servidores em face de reiterada omissão dos demais Poderes de cumprirem imperativo de ordem constitucional.
A atuação voltada para reparar o dano configura justamente a tentativa de dar efetividade ao sistema de freios e contrapesos que deve permear a atuação dos três Poderes da República, o qual se justifica não somente pela necessidade de frear os abusos que, eventualmente, possam ser cometidos por um dos Poderes em face dos demais, senão também para evitar omissões no tratamento dos direitos e das garantias fundamentais dos cidadãos, como a constatada na situação em apreço.
Ademais, este entendimento não afronta o enunciado nº 339, das súmulas do Supremo Tribunal Federal, uma vez que por aumento se entende determinado acréscimo que irá se agregar definitivamente ao subsídio percebido mensalmente, enquanto que a indenização se apresenta como uma prestação independente, isto é, que não se incluiria na remuneração mensal, mas sim se realizaria de maneira autônoma e estritamente dentro dos limites do dano causado.
Destaque-se que a indenização em questão deve ser quantificada de acordo com o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), sendo respeitada a prescrição qüinqüenal prevista no Decreto nº 20.910/32.
Por fim, abordando a questão envolvendo o ressarcimento a título de danos morais, corroboramos o entendimento praticamente unânime dos Tribunais. O dano moral, à luz da ordem constitucional vigente, nada mais é do que violação do direito à dignidade. Contudo, tal critério se apresenta deveras subjetivo, tornando a configuração do dano moral, ainda, uma questão extremamente tormentosa para a doutrina e para a jurisprudência. Logo, se torna mais necessária a observância das regras da boa prudência, da razoabilidade e da criteriosa ponderação das realidades da vida, devendo ser trilhada a lógica do razoável, em busca da concepção ético-jurídica dominante na sociedade.
Neste sentido, entendemos que o simples prejuízo econômico, conforme o sentido pelos servidores em relação à perda do poder aquisitivo da moeda, em virtude da mora legislativa quanto à revisão anual de vencimentos do funcionalismo público, não configura, por si só, o dano moral, pois não agride a dignidade humana. Os eventuais aborrecimentos dele decorrentes ficam subsumidos pelo dano material que consideramos existente, salvo se os efeitos do inadimplemento, por sua natureza ou gravidade, exorbitarem o aborrecimento normalmente decorrente de uma perda patrimonial e também repercutirem na esfera da dignidade da vítima, quando, então, configurarão o dano moral.
Do exposto, concluímos, portanto, que os servidores prejudicados pelo vácuo legislativo existente entre o advento da Emenda Constitucional nº 19 e a posterior regulamentação da matéria, ocorrida pela Lei nº 10.331/01, devem ser ressarcidos dos danos materiais existentes, não havendo, contudo, em regra, que se falar em danos morais.

[1] Moraes, Alexandre. Direito Constitucional. 14ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 334.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Os penduricalhos do Supremo Tribunal Federal

O então Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso sempre afirmava que o Supremo Tribunal Federal deveria abrir mão de seus "penduricalhos". Esta afirmativa é importante para refletirmos sobre as ponderações do Prof Oscar Vilhena Vieira no texto publicado no jornal O Valor de 06 de novembro de 2007. As possíveis distorções notadas na "Supremocracia" decorrem do próprio "lobby" exercido pelo STF durante a Constituinte de 87 e 88 de não querer perder espaço institucional ao ficar apenas com a atribuição de Justiça Constitucional
Supremocracia: vícios e virtudes republicanas
Por Oscar V. Vieira
06/11/2007

Difícil pensar um tema relevante em nossa vida política que não venha a
exigir, mais dia menos dia, a intervenção do STF: troca-troca de
partidos, cláusula de barreira partidária, julgamento de altas
autoridades (vide Collor e mensalão), limites de atuação das CPIs, do
Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça, sessões secretas
do Senado, direito de greve dos servidores públicos, guerra fiscal,
aposentadorias de governadores, reforma administrativa, previdenciária
e do próprio Judiciário, pesquisa com células-tronco, quotas nas
universidades, desarmamento, distribuição de medicamentos, aborto,
direito adquirido - sem falar em milhares de habeas corpus, como o
concedido para Salvatore Cacciola. Tudo parece exigir uma última
palavra do STF. Se por um lado isto demonstra a grande fortaleza desta
instituição, por outro é sintoma de uma forte crise, para não dizer
degradação, de nosso sistema democrático, que hoje depende deste novo
"Poder Moderador" para funcionar.
Múltiplas são as razões para esta proeminência do STF em nosso
sistema político. A primeira delas decorre da própria ambição da
Constituição de 1988 que, corretamente desconfiada do legislador, sobre
tudo legislou. O efeito colateral do compromisso maximizador assumido
pelo texto de 1988, no entanto, foi a criação de uma enorme esfera de
tensão constitucional. A equação é simples: se tudo é matéria
constitucional, o campo de liberdade dado ao corpo político é muito
pequeno. Assim, qualquer movimento mais brusco gera um incidente de
inconstitucionalidade e, conseqüentemente, a judicialização de uma
contenda política.
A segunda razão está ligada à própria arquitetura do STF. A
Constituição de 1988 conferiu ao STF amplos poderes de guardião
constitucional. Ao Tribunal foram atribuídas funções que na maioria das
democracias contemporâneas estão divididas em pelo menos três tipos de
instituições: tribunais constitucionais, foros judiciais especializados
e cortes de última instância.
Na condição de tribunal constitucional, o STF tem por obrigação julgar
ações diretas voltadas a verificar a constitucionalidade de leis e atos
normativos produzidos pela esfera federal e estadual, assim como
apreciar a omissão dos poderes Legislativo e Executivo na implementação
de programas ou diretrizes constitucionais. Dada a total falta de
cerimônia de nossos políticos em agredir a Constituição, o STF tem sido
obrigado a declarar inconstitucionais cerca de três quartos de todas
leis a ele submetidas. Mais recentemente tem substituído o legislador
omisso, criando novas regras para o nosso sistema político. Isto
demonstra a enorme fragilidade das instituições de representação
política, o que certamente não é um bom sinal.
No exercício da função de foro especializado, o Tribunal foi
colocado em uma delicada posição. Em primeiro lugar cumpre-lhe julgar
criminalmente altas autoridades. Em função da elevada taxa de
criminalidade no escalão superior de nossa triste República, o Supremo
passou a agir como juízo de primeira instância, como vimos no caso da
recém-aceitação da denúncia contra os mensaleiros. Só para ter uma
dimensão do problema, há mais de 250 denúncias contra políticos
aguardando manifestação do Supremo. O Tribunal não está equipado para
isto e mesmo que estivesse, seu escasso tempo seria consumido em
intermináveis instruções criminais, desviando-o de suas
responsabilidades essenciais. A segunda pedra no caminho do STF é ter
que apreciar, às vezes em caráter imediato, como ocorreu no caso Renan
Calheiros, atos secundários do parlamento. Desconheço qualquer outro
tribunal supremo do mundo que faça plantão judiciário para solucionar
quizílias que os parlamentares não são capazes de resolver por si
mesmos, de maneira racional e compatível com a Constituição.
Por fim, o STF serve como última instância judicial, revisando
centenas de milhares de casos resolvidos pelos tribunais inferiores,
todos os anos. De 1988 para cá, foram mais de um milhão de recursos
extraordinários e agravos de instrumento apreciados por 11 juízes, isto
sem falar nos milhares de habeas corpus, pedidos de extradição e outros
processos que chegam ao protocolo do Tribunal todos os dias. Além de
desumano com os ministros, é absolutamente irracional fazer com que
milhões de jurisdicionados fiquem aguardando uma decisão do Tribunal,
enquanto seus devedores se beneficiam da demora na solução destes
casos. Desnecessário dizer que o maior beneficiário deste sistema
irracional é o próprio Estado brasileiro. Neste sentido, a argüição de
repercussão geral e a própria súmula vinculante, se bem empregadas,
podem contribuir para desanuviar o Tribunal.
A questão fundamental é saber até quando o STF poderá suportar esta
enorme pressão decorrente da incapacidade de nosso sistema político de
deliberar dentro de parâmetros legais e racionais. Como a função de
interpretar a Constituição é em grande medida política, dada as
ambigüidades e a alta carga de valores morais abrigada pelo texto
constitucional, corre-se o risco de um processo de fadiga, que leve ao
esgarçamento da preciosa autoridade do STF. Não há aqui nenhuma
sugestão de que o Supremo deva abster-se num momento como este. Antes o
contrário: é momento de resistir. Mas certamente deve o Tribunal ser
desonerado, no futuro, de inúmeras funções que podem ser absorvidas por
outras instâncias judiciais. O fim do foro privilegiado, a
transferência de competências recursais, a eliminação do varejo de
liminares e habeas corpus, entre outras medidas, poderiam contribuir
para preservar a autoridade do STF. É uma ilusão achar que as virtudes
do STF possam suprir ilimitadamente os vícios da participação política.
Ainda que isto fosse possível, seria desejável?
Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito Constitucional da Escola
de Direito da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, onde coordena o
Programa de Pós- Graduação em Direito e Desenvolvimento; diretor
jurídico da organização Conectas Direitos Humanos; mestre em direito
pela Universidade de Columbia, Nova York, e doutor em Ciência Política
pela Universidade de São Paulo; autor de "Direitos Fundamentais: uma da
jurisprudência do STF", Malheiros editores, 2006.

O ativismo judicial versus o formalismo jurídico

O jornal O Valor Econômico de 06 de novembro de 2007 publica uma excelente matéria a respeito da reação do Supremo Tribunal Federal sobre a renuncia do mandato de Deputado Federal de Ronaldo Cunha Lima de modo a impedir o seu julgamento por essa Corte. A Ministra Carmen Lucia ressalta que, hipotese nenhuma, pode prevalecer a letra fria da norma ou formalismo juridico. O texto publicado pelo citado jornal reforça o debate sobre a questão do ativismo judicial.
STF decide se deve julgar Cunha Lima
Valor Econômico
06/11/2007 08:44
BRASÍLIA - O Supremo Tribunal Federal (STF) deverá julgar o ex-deputado, ex-senador
e ex-governador da Paraíba Ronaldo Cunha Lima (PSDB) por tentativa de homicídio,
mesmo depois de ele ter renunciado ao seu último mandato na Câmara dos Deputados
para perder o foro privilegiado e, com isso, evitar a realização do julgamento pela
Corte.
Ontem, quatro ministros do STF (Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto e
Eros Grau) manifestaram-se a favor da realização do julgamento, mesmo após a
renúncia de Cunha Lima. Eles consideraram que o então deputado quis " driblar " o
STF com a sua renúncia, anunciada na quarta-feira, às vésperas de o Supremo
julgá-lo.
O Supremo só não iniciou o julgamento de Cunha Lima ontem porque a ministra Cármen
Lúcia Antunes Rocha pediu vista do processo para examinar melhor a questão. Ao pedir
vista, a ministra quis dar tempo para que outros ministros possam se manifestar
sobre esta que será mais uma tese inovadora no STF. Ontem, a Corte não contava com
cinco de seus onze integrantes. Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes,
Ricardo Lewandowski e Menezes Direito estavam ausentes. A presidente do tribunal,
ministra Ellen Gracie, concordou com o adiamento: " Será oportuno para ouvirmos os
demais colegas " .
O novo avanço do STF será o de considerar que: nenhum político detentor de mandato
eletivo poderá renunciar, se iniciado o processo contra ele no Supremo, para perder
o foro privilegiado e, com isso, evitar o julgamento pela Corte, tendo seu processo
adiado. O assunto está sendo discutido pelo STF dentro de um contexto maior. O
tribunal tem demonstrado em suas últimas decisões que não pretende mais tolerar
abusos da classe política, nem omissões por parte do Congresso Nacional.
Essa tendência, que vem sendo definida nos meios jurídicos como um ativismo judicial
do STF, foi deflagrada no julgamento do mensalão, realizado no final de agosto
passado, quando o tribunal transformou os 40 indiciados em réus e, com isso, se
afirmou contra a impunidade na classe política. Em outubro, o STF definiu, no
julgamento da fidelidade partidária, que os parlamentares que trocarem de partido
estão sujeitos à perda de seus mandatos, numa interpretação inovadora da legislação.
Foi um freio do STF ao troca-troca partidário e uma alteração à regra que prevalecia
até então, permitindo as constantes mudanças de legenda. E, na semana passada, o
Supremo tomou uma decisão também inovadora ao decidir que o funcionalismo deve
seguir, em suas greves, a legislação imposta ao setor privado. Nessa última decisão,
os ministros não apenas criticaram o fato de o Congresso não ter aprovado lei para
regulamentar a greve no setor público, como indicaram qual lei deve ser aplicada.
Agora, no caso de Ronaldo Cunha Lima, os ministros deverão passar por cima da
renúncia dele e julgá-lo.
Antes dessa fase, a tendência no STF era a de considerar que, se a autoridade
renunciasse ao mandato, perderia, com isso, o foro privilegiado e o seu processo
iria para a 1ª instância da Justiça. Mas, os quatro ministros que votaram ontem
foram além e reconheceram na renúncia de Cunha Lima a intenção de evitar o
julgamento. " Essa renúncia teve como objetivo exclusivo impedir que a jurisdição
deste tribunal se exercesse " , acusou o ministro Joaquim Barbosa, relator da ação
penal contra o ex-deputado.
Barbosa lembrou que o processo tramita há 14 anos. Cunha Lima atirou em seu
adversário político na Paraíba, o também ex-governador do Estado, Tarcísio Buriti,
em 5 de dezembro de 1993, num restaurante em João Pessoa. Na época, ele era
governador e tinha direito a foro privilegiado no Superior Tribunal de Justiça. Em
1994, Cunha Lima foi eleito senador e, a partir de 1995, quando tomou posse, passou
a ter foro no STF. Mas, na época, era preciso autorização do Senado para que ele
fosse processado. O Senado negou essa autorização em 1999. Só que, em 2001, o
Congresso aprovou emenda retirando essa necessidade de autorização. Com isso, o
processo chegou ao STF em 2002. Barbosa marcou a data do julgamento para ontem, mas
Cunha Lima renunciou cinco dias antes, na tentativa de fazer com que o caso voltasse
à 1ª instância, onde seria reiniciado na Justiça da Paraíba e demoraria mais 15 anos
para chegar a uma sentença final.
Ontem, Barbosa defendeu que o STF fizesse uma analogia ao que acontece no Congresso.
Lá, uma vez iniciado o processo de cassação de mandato, o parlamentar não pode mais
renunciar. A proposta foi aceita pelos três ministros que votaram ontem.
" Acho que a renúncia, na circunstância em que se deu, às vésperas do julgamento,
propõe um problema de ordem jurídico a esta Corte " , apontou o ministro Cezar
Peluso. Ele explicou que o deputado tem o direito a renunciar, mas que não poderia
fazê-lo para evitar a realização de um julgamento. Se o fizer, a renúncia adquire,
segundo Peluso, um " caráter de fraude " . " A ordem jurídica não pressupõe que se
possa dela fazer uso para fraudar o exercício da jurisdição do STF " , completou o
ministro Eros Grau.
Carlos Britto enfatizou que se, no Congresso, o parlamentar não pode renunciar após
iniciado o processo de cassação de seu mandato, então, também não poderia fazê-lo
para evitar o julgamento no Supremo. " A renúncia não valeria para obstruir o
exercício da competência da Suprema Corte do país " , afirmou Britto.
Mesmo pedindo vista, Cármen Lúcia também criticou o fato de Cunha Lima usar uma
formalidade da lei - a possibilidade de renúncia - para atentar contra o seu
espírito, contrário à impunidade. " A letra formal, isolada da lei poderia levar a
um resultado oposto ao que quer a Constituição. " O julgamento deverá ser retomado
amanhã.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Editorial do Jornal Folha de São Paulo e o Ativismo Judiciário

O editorial do jornal Folha de São Paulo publicado em 5 de novembro de 2007 é importante para a nossa reflexão a respeito do papel dos juizes e, por consequência, da atuação do nosso Poder Judiciário. Observe-se que o citado editorial denota o "ativismo judiciário" e não o ativismo judicial. Cremos que a preocupação do referido jornal paulista está mais vinculado a instituição do Judiciário como um todo. Alerta, entre outras observações, para o fato de que o Poder Judiciário não ter uma composição eleita de forma democrática pela sociedade. Sublinha, ainda, o mencioando editorial que o ativismo presente no Supremo Tribunal Federal pode contaminar os demias poderes. Se essa corte está "falando com mais impeto nos autos" deveria redobrar os cuidados. Não devemos esquecer,aliás, como exemplo paradigmático de reflexão, o voto do Ministro Cesar Asfor Rocha integrante do TSE na sessão de 27 de março de 2007 no qual foi aprovada a Resolução/TSE 22.526/2007 consagrando o principio da vedação a infidelidade partidária. Nesse referido voto, o Ministro Cesar Asfor Rocha fundamentou a sua posição contra a infideldiade partidária porque esta feriria o principio da moralidade. Como é lastreada essa moralidade? Pelo "meu sentir", afirma o Ministro Cesar Asfor Rocha. Assim, o ativismo judicial ou segundo o jornal Folha de São Paulo em 5 de novembro de 2007 com o ativismo judiciário enquadra-se num dificuldade para a sociedade brasileira: afinal o que é "o meu sentir" . Não é um parâmetro bastante vago para justificar um voto do alto teor politico-institucional como o da infidelidade partidária, questionamos.
Ativismo judiciário
Dentro de sua atribuição, Supremo muda atitude e passa a intervir mais na sociedade
e a suprir a omissão do Legislativo
NO ESPAÇO de poucas semanas, o Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou manchetes ao
tomar decisões polêmicas que implicaram a criação de regras não-explícitas na
legislação. A primeira foi o estabelecimento da fidelidade partidária. Agora a corte
impôs limites às greves de servidores públicos. Outras decisões do mesmo tipo podem
estar a caminho.
Esse novo ativismo judiciário contrasta com a história da corte. Até recentemente,
quando se deparava com a ausência de norma jurídica, o STF limitava-se a declarar a
omissão do Legislativo, sem definir regras.
Embora grupos conservadores torçam o nariz, essa não é uma tarefa estranha ao
Judiciário. Interpretar já é em alguma medida reescrever a lei. No mais, a
jurisprudência constitui em todos os sistemas judiciais do Ocidente fonte legítima
de inovação.
No caso específico do ordenamento jurídico brasileiro, o inciso LXXI do artigo 5º da
Constituição estabelece: "Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de
norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à
cidadania".
Tal mecanismo, importado do direito anglo-saxão, que permite a magistrados criar
normas provisórias quando o Legislativo deixa de fazê-lo, chegou a ser apontado como
uma das grandes novidades da Carta de 88. Na prática, porém, muito por timidez das
cortes superiores, o mandado de injunção vinha sendo utilizado com parcimônia.
Mas a decisão do Supremo sobre a greve de servidores ocorreu no curso de um pedido
de injunção. Tramitam no STF 53 dessas ações. Em breve deverão ser julgados o aviso
prévio superior a 30 dias e a aposentadoria especial de servidores, para os quais
faltam normas legais.
A nova atitude da corte tem origem política. Além de ter passado por grande
renovação -nos últimos cinco anos, o presidente Lula indicou 7 dos 11 ministros-,
consolidou-se na sociedade a percepção de que o Legislativo se furta à sua
responsabilidade de produzir leis. De fato. Passados 19 anos da promulgação da
Carta, que exige a regulamentação do direito de greve de servidores, o Congresso não
o fez.
Como a sociedade não pode funcionar sem determinadas normas, o vácuo legal começa a
ser preenchido pelo Supremo -o que é em princípio positivo. A concorrência tende a
pôr o Legislativo para trabalhar.
Daí não segue que as decisões das cortes serão sempre consonantes com os anseios da
população -o Judiciário não é um Poder eleito. Há até mesmo o risco de o ativismo do
STF contaminar outras cortes e produzir monstrengos como a decisão da Justiça
Eleitoral fluminense de vetar candidatos vagamente acusados de "crimes graves" no
pleito do ano que vem.
Diga-se, a propósito, que o excesso de declarações públicas sobre todo e qualquer
assunto por parte de alguns magistrados não contribui para que se crie o clima
adequado a uma Justiça mais ativa. Se a corte máxima está falando com mais ímpeto
nos autos, deveria redobrar o cuidado e portar-se com maior continência fora deles.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Sentença de perfil aditivo

Informativo nº 485 – STF
Data: 31 de outubro de 2007

Mandado de Injunção e Direito de Greve - 8


No MI 670/ES e no MI 708/DF prevaleceu o voto do Min. Gilmar Mendes. Nele, inicialmente, teceram-se considerações a respeito da questão da conformação constitucional do mandado de injunção no Direito Brasileiro e da evolução da interpretação que o Supremo lhe tem conferido. Ressaltou-se que a Corte, afastando-se da orientação inicialmente perfilhada no sentido de estar limitada à declaração da existência da mora legislativa para a edição de norma regulamentadora específica, passou, sem assumir compromisso com o exercício de uma típica função legislativa, a aceitar a possibilidade de uma regulação provisória pelo próprio Judiciário. Registrou-se, ademais, o quadro de omissão que se desenhou, não obstante as sucessivas decisões proferidas nos mandados de injunção. Entendeu-se que, diante disso, talvez se devesse refletir sobre a adoção, como alternativa provisória, para esse impasse, de uma moderada sentença de perfil aditivo. Aduziu-se, no ponto, no que concerne à aceitação das sentenças aditivas ou modificativas, que elas são em geral aceitas quando integram ou completam um regime previamente adotado pelo legislador ou, ainda, quando a solução adotada pelo Tribunal incorpora “solução constitucionalmente obrigatória”. Salientou-se que a disciplina do direito de greve para os trabalhadores em geral, no que tange às denominadas atividades essenciais, é especificamente delineada nos artigos 9 a 11 da Lei 7.783/89 e que, no caso de aplicação dessa legislação à hipótese do direito de greve dos servidores públicos, afigurar-se-ia inegável o conflito existente entre as necessidades mínimas de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores públicos, de um lado, com o direito a serviços públicos adequados e prestados de forma contínua, de outro. Assim, tendo em conta que ao legislador não seria dado escolher se concede ou não o direito de greve, podendo tão-somente dispor sobre a adequada configuração da sua disciplina, reconheceu-se a necessidade de uma solução obrigatória da perspectiva constitucional.
MI 670/ES, rel. orig. Min. Maurício Corrêa, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007. (MI-670)
MI 708/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007. (MI-708)
MI 712/PA, rel. Min. Eros Grau, 25.10.2007. (MI-712)


Mandado de Injunção e Direito de Greve - 9


Por fim, concluiu-se que, sob pena de injustificada e inadmissível negativa de prestação jurisdicional nos âmbitos federal, estadual e municipal, seria mister que, na decisão do writ, fossem fixados, também, os parâmetros institucionais e constitucionais de definição de competência, provisória e ampliativa, para apreciação de dissídios de greve instaurados entre o Poder Público e os servidores com vínculo estatutário. Dessa forma, no plano procedimental, vislumbrou-se a possibilidade de aplicação da Lei 7.701/88, que cuida da especialização das turmas dos Tribunais do Trabalho em processos coletivos. No MI 712/PA, prevaleceu o voto do Min. Eros Grau, relator, nessa mesma linha. Ficaram vencidos, em parte, nos três mandados de injunção, os Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio, que limitavam a decisão à categoria representada pelos respectivos sindicatos e estabeleciam condições específicas para o exercício das paralisações. Também ficou vencido, parcialmente, no MI 670/ES, o Min. Maurício Corrêa, relator, que conhecia do writ apenas para certificar a mora do Congresso Nacional.
MI 670/ES, rel. orig. Min. Maurício Corrêa, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007. (MI-670)
MI 708/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 25.10.2007. (MI-708)
MI 712/PA, rel. Min. Eros Grau, 25.10.2007. (MI-712)

As especifidades para implementar a Reforma do Judiciário na França

A entrevista do Prof. José Eduardo Faria (USP) constante do nosso " Supremo Tribunal Federal em Debate" aponta para a importância da atual fase de internacionalização do capitalismo (globalização) para compreender a realidade social presente. Contudo, não esqueçamos a necessidade de ponderarmos a força de nossas dinâmicas sociais internas. Tal força está presente e agudizada em temas como a Reforma do Judiciário. Não esqueçamos que a Emenda Constitucional nº 45/04 deflagrou, por exemplo, conflitos corporativos entre a Justiça Federal e os Juízes Trabalhistas no tocante a competência na solução de conflitos dos servidores públicos. Le Monde Semanal de 13 de outubro de 2007 traz para a nossa reflexão a matéria "Rachida Dati choca-se com os eleitos para reformar a carta judiciária". A citada noticia reporta: "O governo não renunciará a reforma da carta judiciária" assegurou várias vezes a Ministra da Justiça Rashida Dati. Mas, antes mesmo que a chancelaria (Ministério da Justiça) implemente o seu projeto definitivo da reorganização e de supressão dos tribunais, Madame Dati afronta a intenção e as pressões dos eleitos locais. O "dossier", sobre o qual nenhum Ministro da Justiça não consegui alcançar desde de 1958, reune contra ele os eleitos da maioria e a oposição. Vejam que desde a Constituição de 1958, na França, não se logrou uma Reforma do Judiciário. E pela matéria do jornal Le Monde lá o fator impeditivo é claramente interesse politico de eleitos locais de perderem a prestigiosa presença de um tribunal em sua região. Cremos que com essa informação podemos refletir a respeito do possível sucesso de qualquer iniciativa de Reforma do Judiciário entre nós como também o fato da presente internacionalização (globalização) não é uma única via de efeitos. Há outras variáveis bastante ativas em nossas sociedades.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Direito e Economia num tempo global

Entrevista com José Eduardo Faria
Revista Getúlio
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Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e professor visitante do Curso de Especialização GVlaw, José Eduardo Campos de Oliveira Faria construiu reconhecida reputação como jornalista, jurista e pesquisador. Com dois prêmios Esso de Jornalismo, é dono de uma escrita precisa e elegante. Premiado como melhor orientador de doutorado em Ciências Humanas (1992), integra o conselho editorial de revistas como a do International Institute for the Sociology of Law, a Revista Direito GV, a portuguesa Economia e Sociologia, de Évora, além desta Getulio, entre muitas outras. Tem trabalhado com áreas como mudança social, poder e legitimidade, direitos humanos, globalização, transformações do poder judiciário, metodologia do ensino jurídico, direitos sociais e eficácia jurídica. Autor de mais de duas dezenas de livros – dentre os quais A Crise do Direito numa Sociedade em Mudança,O Direito na Economia Globalizada e Qual o Futuro dos Direitos? (este em parceria com Rolf Kuntz), foi professor visitante das universidades de Brasília, Andaluzia e Lecce, na Itália. Para falar sobre economia e direito em tempos de globalização, ele recebeu a reportagem de Getulio para a conversa que se segue.

O senhor acredita que haja um uso ideológico da palavra "globalização"?

José Eduardo Faria Há trinta anos, não se usava essa palavra, globalização. A expressão para designar o fenômeno de integração de mercados era "mondialização", e vinha da influência da literatura francesa, em matéria de historiografia. Depois do processo de desregulamentação da economia durante a gestão de Margaret Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos, se iniciou o uso massivo do termo e uma espécie de naturalização da idéia de que esse fenômeno é inexorável, ou seja, não dá lugar para alternativas. A utilização ideológica dessa palavra impediu o cidadão comum de perceber que a globalização é problema e não destino. Ela não é necessariamente inexorável e também não é um destino indolor, pelo contrário, trouxe problemas e desafios nos mais variados setores econômicos, sociais, políticos e culturais ao longo desses trinta anos. Vejo a globalização como um processo multidimensional, multicausal e multiescalar. Ou seja, ele possui várias facetas, é fruto de diferentes fatores e se dá em várias escalas. Historicamente, é um processo antigo, que pode também ser visto a partir de uma idéia de destruição criadora, que vai se caracterizando por fases cada vez mais curtas. Se por um lado a globalização é um fenômeno antigo, por outro lado o que tem de novo é a velocidade, a intensidade e seu lado de exclusão. É um fenômeno extremamente veloz, avassalador e altamente excludente, do ponto de vista social.

Nos anos 50 houve uma visão otimista do futuro: as previsões davam conta de que as pessoas iriam trabalhar menos e, com a robotização, sobraria muito tempo para o lazer. A crueza da globalização jogou por terra o bem-estar que se previa?

Mudou tudo, porque o avanço da globalização nos levou a perder a inocência. Havia a idéia de que se poderia obter, com a pacificação do mundo e o enquadramento das divergências, um crescimento bastante significativo, capaz de gerar inclusão econômica e bem-estar social. Até os anos 60 do século passado houve, digamos, uma excessiva fé nas virtualidades de políticas keynesianas de crescimento, uma crença enraizada no senso comum de que elas conduziriam a uma sociedade afluente e a um Estado capaz de distribuir renda, proteger os mais fracos e produzir justiça social. Essa visão entrou em crise nos anos 70, a partir dos choques de petróleo, da estagnação do capitalismo do pós-guerra e do colapso do sistema relativo de preços, já que o barril pulou de 1,5 dólar, em 1972, para cerca de 36 dólares em 1979. Ou seja, o modelo de crescimento do capitalismo do pós-guerra, no século XX, esgotou-se nos anos 70 a 80.

Que reflexos traz esse esgotamento?

A partir daí, há uma tentativa do capitalismo de reduzir sua dependência do óleo, descobrir novas fontes de energia, desenvolver novas matérias-primas, baratear os custos de produção e tentar, a qualquer preço, recuperar margens de lucratividade. Isso levou a iniciativa privada a se aproximar da universidade, e naquele momento, houve uma espécie de pacto mefistofélico, ou seja, um processo de mercantilização da universidade e de instrumentalização da pesquisa acadêmica voltada para o mercado, com crescentes parcerias entre iniciativa privada e centros de pesquisa. A partir dos anos 90, o capitalismo retoma certa linha de crescimento, mas dentro de padrões bastante voltados à competitividade e à eficiência. Como conseqüência, ocorre um crescente acirramento das disputas comerciais no mundo inteiro. Como as empresas que sobrevivem são as que conseguem ganhar escala, houve um processo de concentração empresarial e, posteriormente, de deslocamento da decisão econômica do setor industrial para o setor financeiro, além da multiplicação dos mais variados tipos de riscos, desde os tradicionais riscos de crédito até os ecológicos, e dos problemas de sucateamento tecnológico precoce.

E houve a chegada da informática.

Sim, a partir dos anos 90, o desenvolvimento da informática muda o horizonte de tempo no âmbito da economia, tornando-o instantâneo, por meio da comunicação on line. É uma aceleração que alimenta e é alimentada pela lógica do sistema financeiro: o máximo de lucro possível no menor prazo de tempo, com o máximo de segurança e o menor risco. O ciclo de rotação do capital aumenta significativamente de ritmo, gerando conseqüências que afetam o Judiciário, o Estado de Direito e a democracia, e que relativizam alguns princípios que herdamos das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, como a idéia de Estado Nação, soberania e democracia representativa. Isso causa problemas estruturais complicados. O primeiro deles é o fato de que a decisão econômica é cada vez mais rápida, enquanto a decisão do Judiciário é, por sua própria natureza, mais lenta. A característica do Judiciário é a via do direito de defesa, do contencioso, do duplo grau de jurisdição, do garantismo processual. É um tempo diferido, de etapas bem definidas e sucessivas, portanto, um tempo incompatível com o tempo da economia.

E diferente da lógica de mercado.

A lógica de tempo da economia é a da rapidez, do aqui agora. Há um descasamento com o controle da economia pelas instituições jurídicas e políticas, agravado pela crescente natureza transterritorial da economia globalizada. Por um lado ocorre uma internacionalização e uma desterritorialização da decisão econômica, mas por outro lado a idéia de democracia representativa está presa à noção de um espaço, ou seja, a validade do processo político se dá dentro dos limites de um território. Com a transterritorialização e a internacionalização da decisão econômica, passa a haver dificuldade para controlar democrática e politicamente essas decisões econômicas.

Ocorre também a desnacionalização das empresas, que passam a não ter sede?

O problema não é a questão da sede, mas de perceber que esse processo de transnacionalização e integração de mercado, ou seja, de globalização, permite às empresas operar com um alcance maior. Daí o advento da empresa global. Trata-se de uma geração à frente, para o bem e para o mal, da multinacional, que por sua vez já era uma etapa à frente da velha empresa internacional. A fidelidade da empresa global é com o acionista, com o objetivo de oferecer a ele dividendos cada vez maiores. Ela não tem pátria, e o fato de sua sede estar aqui ou ali não quer dizer fidelidade a esse ou aquele país. Ocorre uma brutal concentração do poder empresarial de um modo geral e do poder financeiro de modo particular. Das cem maiores economias do mundo, hoje, 21 não são países, são conglomerados mundiais. Isso muda as relações políticas, traz desafios e, acima de tudo, a dificuldade de reconstruir as instituições a partir de valores que não serão necessariamente valores dos acionistas. É preciso redimensionar o trabalho político para manter as preocupações com a inclusão social, a solidariedade e a justiça distributiva.

A própria política tradicional perdeu patamar, não é?

Nesse panorama sim, se começa a perceber o enfraquecimento de sindicatos e partidos políticos. Isso não anuncia a morte da política, pois ela se reabre do ponto de vista de outras práticas que ainda engatinham, mas vão mostrando rumos a partir de movimentos transnacionais, por ONGs, por grupos de pressão e por uma crescente presença desses organismos, num primeiro momento em termos de confronto, mas num segundo momento sendo aceitas como interlocutores ou observadores em encontros internacionais. São movimentos importantes, com capacidade de se articular via internet, que criam uma série de situações e buscam ser aceitas como interlocutores. Então o desafio é reconstruir as instituições políticas a partir de um outro patamar.

Esse patamar seria um Estado acima de todos os países?

Não, não haverá uma caminhada rumo a uma linha de transposição dos estados nacionais para o plano internacional. Sou cético quanto à possibilidade de um Estado mundial, um Judiciário mundial, um Legislativo mundial. Essa projeção é flagrantemente inviável. A integração de mercados é, acima de tudo, assimétrica. Há uma distribuição desigual do poder econômico. E também há o custo o custo social decorrente dessa assimetria, expresso, por exemplo, pela exclusão da África e de parte da América Latina na economia globalizada. Quando lemos nos jornais da Espanha sobre a chegada dos toscos barcos de imigrantes – as chamadas "pateras" – vindos da África, ou o episódio da revolta dos jovens franceses de origem argelina, ou o que acontece com os turcos na Alemanha ou com cabo-verdianos em Portugal, percebemos que, a médio prazo, temos uma bomba de efeito retardado. Xenofobia, fascismo e radicalismos religiosos são três facetas dessa granada.

A globalização trouxe a imposição da rentabilidade, o que supõe tanto a mão-de-obra explorada em países autoritários quanto o desemprego para baixar custo. No caso de uma montadora, reduzir custos pode significar 8 mil empregados na rua.

Por trás do processo de demissão há uma série de questões. Na medida em que a flexibilização da produção traz a possibilidade de trocar as fábricas de cidades, países ou continentes com muita facilidade, os grandes conglomerados, na busca de vantagens comparativas, se deixam explorar docemente pelo dumping social dos países autoritários, principalmente os asiáticos, mas também os do Leste Europeu. As empresas pressionam cada vez mais no sentido de impor sua vontade, e no caso de ela ser recusada ameaçam deslocar a fábrica para outra área, deixando verdadeiros cemitérios industriais e reabrindo esses empregos em outros países, nem sempre com qualidade do ponto de vista das relações trabalhistas. O salário industrial por hora na Lituânia é de 1,4 euro; 2 euros na Hungria, 3 euros na República Tcheca. Na Alemanha, é de 27 euros por hora, na França de 20,7 euros e na Inglaterra de 20 euros. Então, ocorre um processo maciço de deslocamento desses empregos da Europa Ocidental, com tradição democrática de conquistas de direitos, para países necessitados de investimentos industriais, com bom nível de escolaridade e salários baixos. Quanto maior é o dumping social, mais intensas são as pressões pela revogação de direitos conquistados democraticamente. Quando se fala em desregulamentação e abertura comercial também se fala de desconstitucionalização e deslegalização de direitos.

Como fica a China nessa tabela?

Ela é o caso mais impressionante. Há cerca de seis anos a Fundação Abrinq realizou uma pesquisa sobre a média do custo-hora de mão-de-obra na área de brinquedos. Na época, um operário brasileiro ganhava 8,26 dólares, contra 32 centavos na China. Um mecânico ganhava 7,52 dólares contra 66 centavos na China; e um engenheiro, 18 dólares contra 85 centavos, na China. De lá para cá pode ter havido uma variação de câmbio, mas a distância dos valores em termos absolutos continua alta. Mas esse dado não é tão impressionante quanto os que se referem à carga efetiva mensal trabalhada nos dois países. No Brasil, o número gira em torno de 153 horas mensais. Na China, o operário trabalha 218 horas, o mecânico 212 e o engenheiro 207 horas. Então além da diferença do custo médio para a empresa em termos salariais mais encargos, há ainda a questão do trabalho efetivo. Isso mostra claramente que no Brasil existe democracia, Estado de Direito e Constituição, e que essas três coisas representam, do ponto de vista do preço final do bem e do serviço, uma elevação de custo que a ditadura asiática não repassa. É curioso verificar como os estudantes de direito têm tido dificuldade de perceber isso.

Ou seja, na globalização, a democracia representa custo.

Sim, e, portanto, um produto de um país asiático que não respeita as garantias fundamentais, as liberdades públicas e os direitos sociais acaba tendo vantagem comparativa. Isso gera problemas para regimes como o do Brasil, democracias em consolidação, com constituições razoavelmente generosas ou ao menos preocupadas com o reconhecimento de direitos elementares. Porque essa situação global dá às empresas flexibilidade para barganhar concessões e vantagens sob pena de transferir suas fábricas ou para o Leste Europeu ou para a Ásia. Isso fragiliza algumas democracias, que tentam manter os direitos democraticamente constituídos, ao mesmo tempo em que precisam lidar com o fato da menor eficiência e maior custo do que as ditaduras asiáticas.

Como o senhor analisa as últimas demissões na Volks de São Bernardo?

Na questão da fábrica da Volkswagen em São Bernardo, há o problema do real excessivamente valorizado com relação ao dólar e de sucateamento tecnológico tanto de produtos quanto da própria planta industrial. Os dados mostram que de 1997 a 2000 houve um corte de pessoal em torno de 36%. No entanto, a produtividade cresceu significativamente com o aumento da robotização, ou seja, à custa da substituição do trabalho pelo robô. É um processo que leva a uma rodada de negociação muito dura para o Sindicato dos Metalúrgicos. Há uns oito ou dez anos, quando o presidente do sindicato era o atual ministro do Trabalho, Luiz Marinho, acompanhei pelo menos uma negociação. Na época, a resistência foi mais local, dos metalúrgicos do ABC com apoio da CUT. Nos últimos anos, houve uma internacionalização da atividade sindical. Marinho e outros líderes sindicais passaram a viajar para Wolfsburg, para conversar com a cúpula do grupo e articular apoio sindical internacional. Em alguns momentos, a Volkswagen chegou a suspender parte das demissões e aceitou retomar uma nova rodada de negociações. Reabrir as negociações é uma vitória sindical que se dá no contexto de uma luta transnacionalizada por parte dos sindicatos. É um dado significativo dessas novas redes de resistência e solidariedade que se contrapoem ao dumping social.

Mas hoje até o peso específico do operário metalúrgico é outro.

E isso leva a outra discussão interessante, sobre a possibilidade de recolocação da mão-de-obra do setor industrial, demitida pelo avanço da tecnologia, no setor de serviços. Mas, além de levar tempo, esse processo é política, social e economicamente muito mais complicado e difícil do que parece. Por causa da concentração de renda e da não-democratização do acesso aos equipamentos públicos, o nível médio de escolaridade dos trabalhadores é baixo. Muitos deles simplesmente não têm condições de se transferirem para áreas que exigem compreensão de manuais e operação com máquinas de leitura digital. Pois se o trabalhador brasileiro tem um baixo nível de formação, para complicar não existem escolas públicas em número suficiente que o requalifique rapidamente para atuar no setor de serviços. O processo de realocar o trabalhador egresso do sistema industrial para o setor de serviços passa por essa limitação: a falta de qualificação, por um lado, e a inexistência de um sistema educacional capaz de produzir capital humano. O resultado acaba sendo a expansão do analfabetismo funcional, como revelam os indicadores sociais.

Algum país opera esse projeto de requalificação?

Alguns países já fazem isso, como China, Japão, Chile, Uruguai ou Argentina. É um processo de capacitação das novas gerações, não apenas no sentido de estimular a chegada dos jovens ao ensino superior, mas de direcioná-los a atividades técnicas que não necessariamente demandam ensino superior. Isso é feito de maneira mais planejada, com metas claramente definidas, e não como acontece no Brasil, em que há o chamado "sistema S", as escolas do Senai, Sesc, que parecem funcionar bem mas têm um custo caro e não conseguem atender a toda a demanda. O mesmo ocorre com as Fatecs, que cresceram em alguns Estados, também não dão conta da demanda. No debate sobre políticas públicas no campo educacional, atualmente, parece-me haver uma excessiva de valorização da discussão do ensino superior sem que se pense o suficiente sobre a elevação do nível de qualidade do ensino básico. E é justamente aí onde reside o problema.

Hoje, o grande organismo mundial é a OMC, mais que a ONU. Nesse panorama, como fica a atuação do direito? Se os economistas dão as cartas, há espaço para os operadores do direito?

Há espaço, sim. Os organismos multilaterais cada vez se diferenciam funcionalmente, exigindo profissionais com formações específicas. Banco Mundial, FMI, OIT, BID, União Européia, OCDE – todos esses organismos têm postos e cargos para operadores jurídicos. Mas o que se exige deles é uma visão-de-mundo cosmopolita, uma sólida bagagem cultural, uma boa formação teórica e uma predisposição ao diálogo interdisciplinar, características que não estão presentes na maioria esmagadora dos cursos jurídicos no Brasil. Neles, o que prevalece é um distanciamento da realidade social e econômica, um apego inadmissível às tradições emboloradas, falta de rigor analítico, um deplorável ecletismo e uma confusão entre prática jurídica e prática forense. Isso é incompatível com o tipo de operador jurídico de que empresas, instituições financeiras e escritórios necessitam. Há importantes pesquisas feitas por Bryant Garth, John Flood e Yves Dezalay sobre o futuro das profissões jurídicas, os riscos do que chamam de "dolarização do conhecimento jurídico" e as práticas profissionais valorizadas pelos grandes escritórios americanos e ingleses. Se as empresas são mundiais, dizem esses pesquisadores, é natural que queiram ter uma assessoria jurídica de escritórios com alcance mundial, como o Backer & Mackenzie. Ora, isso está levando a OMC a discutir a questão da abertura dos serviços jurídicos nos países em desenvolvimento. Mais dia, menos dia, a abertura do mercado brasileiro de serviços jurídicos estará na agenda das discussões da OMC. Em 2002, o Itamaraty identificou a chegada desse problema e promoveu uma reunião no prédio do BNDES no Rio de Janeiro com representantes dos 100 maiores escritórios brasileiros de advocacia. Simplificando muito a discussão, o Itamaraty perguntou a eles se estavam ou não preparados para a abertura dos serviços legais e disse que tentaria resistir às pressões durante algum tempo, até que esses escritórios ganhassem musculatura e know how para resistir às grandes firmas americanas e inglesas. A abertura dos serviços advocatícios provocará no Brasil o que ocorreu em alguns países da Europa e no Japão: ali, escritórios tradicionais foram varridos pelas firmas americanas e inglesas. Recentemente, em Lisboa, pude assistir a um debate sobre reestruturação dos velhos escritórios portugueses, a maioria tendo de substituir a tradição coimbrã por uma formação wallstreetiana, como condição de sobrevivência.

Parece sensato o Itamaraty pedir prazo, para preparar o país para essa abertura.

Sim, a iniciativa do Itamaraty merece aplauso. Mas é preciso ver o que acontecerá do lado corporativo. A OAB, até onde sei, recusa qualquer tipo de abertura do mercado de serviços legais, resistindo nos planos formal, jurídico, constitucional. Uma postura de defesa, compreensível por tentar defender o mercado de trabalho para os 560 mil advogados do Brasil. Mas existem problemas. Os escritórios que poderiam vir ao Brasil com a abertura dos serviços legais não irão necessariamente competir com advogados brasileiros no nosso contexto, e nem o advogado de família de Bauru irá protocolar uma petição num fórum distrital americano. Eles virão num contexto de trabalho em equipe, buscando formular, com criatividade jurídica, contratos relacionais de longa duração entre as empresas mundiais e seus diferentes parceiros locais, como fornecedores de suprimento e prestadoras de serviços. Eles vêm dentro de uma lógica de contratos altamente sofisticados, que envolvem parcerias de risco, inovações tecnológicas, novas formas de controle, etc. São atividades com as quais os advogados brasileiros dos pequenos e médios escritórios não lidam, nem estão preparados para fazê-lo, até porque as faculdades de direito não preenchem esse tipo de lacuna no mercado. Muitas delas continuam com os olhos voltados ao passado, sem compreender o que está acontecendo ao seu redor. Seus alunos são até capazes de citar alguma passagem da "Oração aos Moços", de Ruy Barbosa, mas não sabem o que é a Rodada de Doha, não conhecem o debate germano-americano em matéria de direito, não têm a menor idéia do que é o processo schumpeteriano de destruição criadora e o impacto que hoje ele causa para a cidadania,a para a democracia e para o Estado de Direito.

A chegada desses escritórios ensinaria novos procedimentos, como ocorreu no mercado de publicidade?

No caso dos escritórios de advocacia, esse salto já foi dado há algum tempo. Quando se olha a trajetória de um Pinheiro Neto, de um Demarest & Almeida, de um Mattos Filho, de um Trench, Rossi e Watanabe, de um Machado, Meyer, Sendacz e Ópice e outros grandes escritórios, todos são organizados nos moldes das grandes firmas americanas ou inglesas. O problema dos escritórios brasileiros é escala, até porque não têm a possibilidade de se converter, a curto e médio prazo, em mundiais.

Ocorreu algo a partir daquela reunião em 2002, no BNDES?

Muitos daqueles escritórios passaram a agir conjuntamente e outros procuraram a Fundação Getulio Vargas, o IBMEC e centros de capacitação, estabelecendo bons canais para eventuais associações. Alguns esperam autorização legal para fechar acordos. Poderá ocorrer com os escritórios brasileiros o que aconteceu com o setor de autopeças. Havia empresas nacionais altamente competitivas e rentáveis, como é o caso da MetalLeve, que não tiveram condições financeiras de competir em escala mundial. Em determinado momento, os acionistas preferiram vender a empresa do que partir para uma luta insana em que seriam derrotados por empresas mundiais. Os escritórios brasileiros terão de se fundir e ganhar escala, associar-se com firmas latino-americanas e com escritórios mundiais. Isso é inevitável em quase todos os setores econômicos. Os escritórios que quiserem sobreviver como players internacionais têm de agir internacionalmente, e alguns já fazem isso. O professor Luis Olavo Batista, representante brasileiro no órgão de Apelação da OMC, disse-me há algum tempo que a pressão diminuiu um pouco nos últimos anos.Mas é evidente que ela poderá ressurgir com vigor mais à frente.

A Academia se mobiliza em relação a essa questão?

Não. O ensino jurídico brasileiro vive uma situação autista. Por um lado ele identifica e até compreende os riscos e as conseqüências da substituição de uma formação profissional baseada em valores morais e éticos por uma formação economicista e acrítica, que enfatiza a competitividade extrema, produtividade levada ao máximo e a canonização de que a função da empresa é assegurar dividendos cada vez mais generosos aos acionistas. Por outro lado, contudo, não tem capacidade analítica nem preparo teórico que lhe permitam modernizar-se a partir dessas transformações. O ensino jurídico não foi capaz de perceber alterações significativas sofridas pelo país, do ponto de vista da economia, do direito, do estado e das instituições, continuando excessivamente forense e preso a uma visão de mundo e de sociedade distanciada da realidade. Nos tempos em que integrei os comitês do CNPq e da Fapesp, ficava espantado quando, por exemplo, via professores de direito civil lecionando e desenvolvendo projetos de pesquisa partindo da idéia de que o Brasil é uma sociedade integrada, estável e pouco conflitiva. Não é por acaso que, nos últimos anos, aumentou significativamente a procura pelos cursos de pós-graduação, por parte dos alunos de direito. Aumentou também, o número de alunos de direito com uma segunda formação universitária, como economia, administração e engenharia. Na São Francisco, é impressionante notar como os alunos do curso noturno são de uma faixa etária bem mais velha do que alunos do curso matutino. Muitos já dispõem de diploma universitário e há até quem já tenha feito mestrado ou doutorado em outra área do conhecimento. Na GVlaw, vejo muita gente com segunda formação ou pós-graduação. Essa movimentação discente em busca de informação interdisciplinar ocorre por uma razão simples: os cursos jurídicos são formalistas e monodisciplinares, retóricos, pouco rigorosos e distanciados da realidade . Esses cursos não conseguem e nem querem trabalhar com um diálogo interdisciplinar e partem de uma visão caricatural de que o economista é um tecnocrata e o advogado um porta-voz da liberdade e da democracia.

Por Carlos Costa e Emerson Fabiani

Modulação Invertida

A Corte continua seu movimento ativista. Sem chamar muita atenção, foi publicado no último Informativo STF (nº 485) o resultado do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade nº 3756, movida pela Câmara Legislativa do DF contra dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal. O que a Câmara do DF pretendia era que o Distrito Federal fosse considerado um município para os fins de limites de gastos de pessoal do poder legislativo. Com isso, seus gastos poderiam chegar a 6% da receita líquida do DF, ao invés de 3%, que é o percentual fixado pela LRF aos Estados. A LRF, no entanto, diz expressamente: “nas referências [...] a Estados entende-se considerado o Distrito Federal” (art. 3º).

Ao julgar a ação, o STF acabou criando um novo instituto, que provisoriamente vou chamar de “modulação invertida”, já que essa figura, pelo que sei, ainda não foi batizada. Mas antes de explicar o que é a modulação invertida, vamos recordar o que é a modulação das declarações de inconstitucionalidade de lei pelo STF.

A modulação, ou modulação temporal, foi trazida ao ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 9868 de 1999, que autorizou o STF, ao “declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, [...] restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado” (art. 27). A lei também fixou as razões que autorizariam a modulação: segurança jurídica ou excepcional interesse social. Ao largo de várias controvérsias sobre o instituto, inclusive com o questionamento da própria constitucionalidade da Lei 9868, o STF vem reiteradamente utilizando a modulação, inclusive em casos de controle de constitucionalidade incidental (vide RE 442683/RS, Informativo STF nº 419).

Pois bem, o que é, então, a modulação invertida? Como vimos, na modulação simples, o STF declara a inconstitucionalidade de um dispositivo legal, retirando-o do mundo jurídico, mas, por razões de segurança jurídica ou interesse público, os atos praticados com base no ato normativo inconstitucional são considerados válidos. Na modulação invertida – que foi o caso da Câmara Legislativa do DF - o Tribunal diz que a lei é constitucional, porém os atos contrários a essa lei devem ser mantidos porque o requerente, de boa-fé, entendia que a lei era inconstitucional.

Mas qual, afinal de contas, é a diferença? Bem, na modulação, ao declarar a inconstitucionalidade da lei, o Tribunal altera a ordem jurídica positiva, daí o porquê de resguardar a segurança jurídica ou o interesse público. Na modulação invertida, porém, a ordem jurídica permanece inalterada. A lei é considerada constitucional, mas isso não muda seu status vinculativo. Toda lei já nasce com presunção de constitucionalidade e não depende de declaração do STF para ter vigência e eficácia.

Assim, como poderíamos dizer que a modulação invertida estaria amparada na segurança jurídica ou no interesse público? Como um comportamento manifestamente contrário à lei pode ser amparado pela segurança jurídica ou pelo interesse público?

A modulação invertida não está prevista na Lei 9868, cujo art. 27 só trata das hipóteses de declaração de inconstitucionalidade. Também não consigo vislumbrar uma fundamentação constitucional para modulação invertida, pois nenhum dispositivo ou princípio da Constituição autoriza o descumprimento antecipado da lei.

A questão da legitimidade democrática na modulação temporal das decisões do STF já é, em si, complicada. No caso da modulação invertida, o problema é ainda mais intrincado, pois o Tribunal chama para si a competência de estabelecer exceções a leis constitucionais.